quinta-feira, 18 de abril de 2024

Cineclube do Atalante: Murder à la Mod

 O Cineclube do Atalante na Cinemateca de Curitiba exibe neste sábado um filme de Brian De Palma. Entrada franca, sempre.

MURDER À LA MOD
Dirigido por Brian De Palma

(Murder à la Mod, 1968, Estados Unidos, 80 min., 16 anos.)
Com Andra Akers, William Finley, Jared Martin.

Karen está deslumbrada com o talento de seu novo namorado (Christopher), fotógrafo e cineasta que desenvolve um trabalho artístico em torno de estudos corporais para os quais ela também começa a posar. Desconfiada por algumas atitudes misteriosas que ele tem junto ao seu produtor e demais membros da equipe, ela descobre que tudo não passa de fachada para a produção de filmes com possíveis mortes reais.

SERVIÇO:
CINECLUBE DO ATALANTE
“Murder à la Mod” (1968), de Brian De Palma
Sábado, 20/04
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321-3552
ENTRADA FRANCA


Realização: Coletivo Atalante

PROJETO REALIZADO COM RECURSOS DO PROGRAMA DE APOIO E INCENTIVO À CULTURA - FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA, PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA, MINISTÉRIO DA CULTURA E GOVERNO FEDERAL.



sábado, 6 de abril de 2024

O Segredo da porta fechada: na água com Fritz Lang

por Giovanni Comodo

O que está abaixo da superfície da água? Mesmo as mais plácidas, além de distorcer formas, perspectivas e borrar os contornos, podem também esconder uma correnteza de forças desconhecidas. O Segredo da porta fechada (1947) é mais um filme de Fritz Lang que explora as misteriosas águas do inconsciente, suas profundezas traiçoeiras cujas superfícies não demonstram à primeira vista.

O filme abre com estas águas calmas em um não-lugar (que não pertence a nenhum cenário da trama) e a voz da protagonista vivida por Joan Bennett em um tom sussurrado, quase semiacordado – e é neste estado entre o sonho e o transe em que se desenvolve toda a película. Bennett (protagonista e produtora, em sua quarta e última colaboração com o diretor) vive Celia, uma jovem rica e solitária sob pressão para deixar de ser solteira e que se apaixona no México por um homem misterioso, o Mark de Michael Redgrave. Como o amor é também um estado de transe, casam-se rapidamente e ela vai viver em sua mansão afastada da cidade. Ali, Celia vai descortinando os segredos dos seus moradores e de seus cômodos trancados. Porque, em Lang, as calmas aparências enganam.

Nascido na Áustria em 1890, Lang se tornou o maior nome do cinema expressionista alemão com filmes como Dr. Mabuse, o jogador (1922) e Metrópolis (1927), em produções cada vez mais ambiciosas e ousadas. Em M, o Vampiro de Düsseldorf (1931), já exibido no Cineclube do Atalante, o realizador explora pela primeira vez o som, em um filme em que tão assustador quanto o serial killer de crianças com sua aparência (e assovio) banal é o retrato da turba que o julga. M, inicialmente chamado “Os assassinos estão entre nós” (uma sentença central para toda obra languiana), teve seu título alterado para não sofrer represálias dos nazistas em ascensão – e que vestiram prontamente a carapuça. Já no poder, os nazistas censuraram seu filme seguinte (O testamento do Dr. Mabuse, 1933) ao mesmo tempo em que Goebbels pessoalmente lhe ofereceu o cargo de chefia da UFA, o grande estúdio de cinema da Alemanha; na mesma noite, Lang partiu para a França, praticamente apenas com a roupa do corpo, segundo seus relatos. Pois Lang é alguém que consegue sentir as pulsões pela violência a enormes distâncias, como um sismógrafo. Nos Estados Unidos, desenvolveu uma filmografia de menor prestígio porém não menos valiosa, cada vez mais sucinta e atmosférica, com desilusão e vertigem, explorando diversos gêneros, do filme de espionagem ao de aventura de piratas.

“A civilização pode muito bem nos ter aprisionado, ter dobrado nossos desejos destruidores em favor dos interesses da sociedade. No entanto, sobrevive ainda na maioria de nós muito da criatura selvagem e sem inibição, o suficiente para que possamos nos identificar momentaneamente com o fora da lei. O desejo de machucar e o desejo de matar são estreitamente ligados à necessidade sexual, sob o império da qual nenhum homem age de modo razoável. Nossa própria repugnância é a prova da angústia subjacente de que cada um de nós pode se transformar num assassino” escreveu Lang na época de lançamento de O Segredo da porta fechada[1], um filme em que trabalha o tempo todo com o sexo e a violência a ponto de irromper tal qual um gêiser: como na cena em que Celia se delicia ao ver dois homens lutando “até a morte” por uma mulher, sendo ela quase atingida pela adaga da briga, momento em que vê pela primeira vez Mark e se apaixona. Nos muitos jogos sexuais do filme, Celia morde Mark, empurra-o para o chão, sugere ela carregá-lo através da porta na chegada ao lar, subvertendo as tradições e subindo a temperatura – em outra rima, o perigo cessa por fim com Mark carregando Celia nos braços para fora da casa, praticamente um novo casamento, agora de fogo.

Nesta combinação entre o conto de fadas do Barba Azul, arquitetura e psicanálise em forças de magia sobre as personagens, há muitos mistérios, espelhamentos e pistas falsas que permanecem sem explicação, círculos incompletos que permanecem abertos – como em um sonho. É preciso mergulhar com Lang e se permitir submergir.



[1] O Segredo da porta fechada foi produzido por Lang, Joan Bennett e seu marido, Walter Wanger. Poucos anos mais tarde, Wanger foi condenado e cumpriu pena por tentativa de homicídio ao atirar no amante de Bennett.

Quando as mulheres dizem sim

por Isadora Mattiolli

Ao soar da meia-noite assistimos ao enlace entre Jerry Corbett (Frederich March) e Joan Prentice (Sylvia Sidney) quando se encontram, pela primeira vez, numa festa da alta sociedade de Chicago. No terraço, Jerry está sozinho, acompanhado apenas de garrafas de whisky vazias, quando vê Joan saindo para tomar um ar fresco, depois de ter sido assediada por um jornalista, que tentou beijá-la à força. Para chamar a sua atenção, Jerry arremessa um rótulo amassado na direção de Joan, e os dois começam a conversar. Jerry é galanteador, com cantorias e cortesias balbuciadas, camuflando charmosamente a sua embriaguez. Como já se passavam das doze badaladas, o acompanhante de Joan os surpreende, dizendo que é hora de ir embora. Apesar dos protestos suspirados de Jerry, ela se levanta para buscar o casaco, não sem antes convidá-lo para um chá em sua casa no dia seguinte. Ele promete ir, ela não aposta muito nisso. Antes de sair, ela volta ao terraço para se despedir, mas a visão ébria de Jerry não a reconhece. Vemos um close up turvo do rosto de Joan, desfocado, que ganha nitidez na medida em que Jerry aperta mais os olhos e, finalmente, pergunta: Quem é você?, ao que Joan responde: Ninguém.

Assim começa Quando a Mulher Se Opõe (Merrily We Go to Hell, 1932), filme dirigido por Dorothy Arzner lançado antes da vigência do Código Hays, que definia normas morais ao conteúdo dos filmes dos estúdios cinematográficos. Caso atendesse ao código, o filme não poderia conter a palavra inferno no título, muito menos no roteiro, como acontece nas inúmeras vezes em que Jerry repete: Vamos alegremente para o inferno, depois de brindar à qualquer coisa. Nesse período, também, estava em vigor a Lei Seca nos Estados Unidos, que impedia a produção, transporte e venda de bebidas alcóolicas. No seu lançamento, o filme demonstrava insubmissão às normas sociais da época, pois além de palavras proibidas, a trama aborda o tema do matrimônio atravessado pelo alcoolismo e a não-monogamia. Apesar desses assuntos serem amplamente debatidos na atualidade, a impressão de que o filme de Arzner é subversivo permanece. O fato da diretora ser uma das pioneiras na indústria cinematográfica e uma das mais bem sucedidas da Era de Ouro de Hollywood, junto de Lois Weber e Ida Lupino, torna a recepção de Quando a Mulher Se Opõe permanentemente revolucionária. Narrativas que envolvem os desafios do casamento moderno constituíram o cinema clássico, mas a perspectiva de uma mulher sobre o assunto, por sua vez, é rara - e valiosa.

No desenvolvimento da trama, Joan, herdeira da fortuna Prentice, se apaixona por Jerry, jornalista e dramaturgo em devir, que vê no casamento uma esperança para esquecer do seu passado e uma possível superação do alcoolismo. Antes do grande dia chegar, Jerry desaponta Joan ao não aparecer para a festa de noivado, tendo desmaiado de bêbado no caminho. Mesmo após diversas decepções, Joan não desiste e é perseverante até o altar, apesar de todas as repreensões de seu pai. Depois de dizerem sim, a vida do jovem casal muda do vinho para a água, quando Jerry fica sóbrio, aos cuidados de Joan, e consegue escrever uma peça, que é aceita para integrar a programação de um teatro em Nova York, e torna-se sucesso de público. A atriz escalada para ser protagonista da comédia Quando a mulher diz não, Claire Hempstead (Adrianne Allen), é um antigo amor de Jerry, que o deixou de coração partido. Na medida em que se reaproximam, Jerry retoma os velhos hábitos e os dois começam um caso. Ao invés de o abandonar, Joan, mesmo em sofrimento, entra no jogo, propondo um casamento aberto. Até que um dia, cansada das humilhações do marido, decide, finalmente, ir embora. Tarde demais, Jerry percebe que a ama, mesmo que nunca tenha conseguido se declarar, e começa a sua jornada pelo perdão de Joan. O roteiro é uma adaptação do conto I, Jerry, Take Thee, Joan (1931), da escritora Cleo Lucas. Apesar de terem desfechos diferentes, o livro e o filme nos dão acesso a uma perspectiva corporificada sobre a experiência ambígua de ser uma mulher moderna, convivendo com valores do presente e do passado, em busca de libertação pessoal e coletiva numa sociedade patriarcal.

A expectativa sobre o ponto de vista cinematográfico de Arzner não recai apenas em seu gênero ou sexualidade (apesar de não ter tratado publicamente do assunto, a diretora era uma mulher lésbica),[1] mas também em sua competência profissional na indústria. Sua trajetória cinematográfica começa ainda jovem, em Los Angeles, na convivência com atores de Hollywood que frequentavam o restaurante de seu pai. Aspirante a médica, Arzner ingressa na Universidade do Sul da Califórnia, mas desiste dos estudos após a I Guerra, retomando o sonho de trabalhar no cinema. Numa visita aos estúdios da Paramount, fascinada com o set de William DeMille, ela aborda o diretor à procura de um trabalho. Tempos depois, aceitou uma vaga para digitadora de roteiros, progredindo para assistente de direção, montadora e roteirista. Tendo aprendido sobre o fazer cinematográfico na prática, Arzner começa a expressar o desejo de se tornar diretora. Jess L. Lasky, co-fundador da Paramount, atribui a ela o filme Fashions for Woman (A Mulher e a Moda, de 1927), e a produção é um sucesso. Arzner vai passar os próximos anos filmando diversos títulos e trabalhando arduamente ao longo de duas décadas. Durante a sua trajetória atrás das câmeras, a diretora ajudou a lançar a carreira de atores e atrizes, fez a transição do cinema mudo para o falado, e introduziu soluções inovadoras, como o microfone com extensor (o boom), alternativa para que a estrela do cinema mudo Clara Bow pudesse se mover livremente no cenário na adaptação aos filmes falados.

Sintonizada com as inovações tecnológicas e suas novas possibilidades narrativas, Arzner aproveita a conquista do som síncrono para explorar a força da palavra no cinema. Em Quando a Mulher Se Opõe vemos a sua dedicação em registrar diversas texturas sonoras:[2] músicas à capela, assobios, buzinas, sapateados, sinos, coqueteleiras em ação, pianos, aplausos - mas é talvez na voz dos protagonistas que encontramos o som mais comovente. Consciente da importância da fala, a diretora tem uma abordagem concisa da filmagem do casamento de Jerry e Joan, tendo como foco a troca de votos e alianças. Cada um deles repete em voz alta as frases matrimoniais sussurradas pelo padre, prometendo ser fiel, amar e respeitar, até que a morte os separe. Enquanto Jerry pronuncia os seus votos, a câmera passeia pelos convidados na igreja, e se concentra mais em mostrar Buck, tremendo de nervoso e emoção, do que o próprio noivo. Na vez de Joan, somos completamente capturados pelo seu olhar, e a observamos enquanto ela confirma, palavra a palavra, seu compromisso. Quando chega o rito de troca de alianças, Jerry, sempre displicente, não encontra a joia e improvisa com um saca-rolhas que estava em seu bolso. Definitivamente, não é o elo perfeito que simbolizaria a eternidade do amor, mas a alegoria ideal para o tipo de contrato que Jerry poderia oferecer a Joan. A atenção em representar um momento tão solene do casamento, quando os noivos afirmam publicamente as suas promessas de união, demonstra como Arzner entendia o ineditismo fílmico do gesto. A cena do casamento é exemplar da confiança da diretora no poder da imagem e da palavra, sem que nenhuma dessas forças se sobreponha à outra, mas que trabalhem juntas para a produção de significados na narrativa.

Mesmo compreendendo a essencialidade da palavra à trama, no filme de Arzner tudo o que aparece em cena é importante para contar, sem necessariamente contar, pelo mérito detalhista dedicado a cada plano e seu trabalho com os atores. Como Arzner é uma diretora minuciosa em seu processo criativo, é instigante observar a sua abordagem sobre o fazer artístico, a partir do enredo de Jerry - o aspirante a dramaturgo. Sem meios e imerso numa vida boemia e autodestrutiva, o jornalista não conseguia terminar a escrita de sua peça. Joan, por sua vez, também tinha um argumento em mente e planejou uma peça, ela mesma, quando insistiu no casamento com Jerry, imaginando uma redenção para o seu protagonista. Funcionou. Sob a sua direção, Jerry torna-se um escritor aclamado e disciplinado. Interpretado brilhantemente por Frederich March, sendo este filme a sua terceira parceria com Arzner, Jerry é um personagem construído através do corpo, já que na maioria das vezes ele está apenas repetindo frases, como You are swell, se esquivando encantadoramente de Joan, ou Is there a baritone in the house? quando busca um quarto integrante para seu coral improvisado numa noitada. Em cena, Jerry escorrega, vacila, gagueja, fala com as mãos, com os pés e com o corpo todo. É enérgico, desastrado, mas perde o dinamismo depois de alguns drinks, que o derrubam ferozmente. Jerry é um corpo eloquente, mesmo que suas palavras titubeadas nem sempre o sejam. Apesar do seu talento e personalidade carismática, a sua glória como autor celebrado é um mérito dividido com Joan, que o coloca na linha, e Claire, que dá vida a sua heroína - coautoria de sucesso que Arzner soube sublinhar perfeitamente colocando as atrizes em cena.

Joan, interpretada pela encantadora Sylvia Sidney, possui um sorriso doce e uma risada melódica. Espirituosa, acha graça de tudo e distribui gentilezas por onde passa. Ao se deparar com as atitudes aviltantes de Jerry, Joan vai perdendo o brilho, seu olhar profundo começa a inundar e, pouco a pouco, perde o entusiasmo vibrante de outrora. Sendo ela mesma uma metteur en scène, na noite de estreia da peça de Jerry, quando ele a troca por uma farra com a trupe, Joan decide se embebedar, pela primeira vez, para que Jerry possa ver com os próprios olhos como ela o vê o tempo todo: You see? That’s the way you look, when you’re drunk. Já que as palavras não convencem, ela precisa mostrar a Jerry o que ele não consegue ver, tornando-se um espelho. Jerry, narcísico, apaixona-se pelo reflexo. Além de sugerir que ela o faça mais vezes, a situação alcoólica da esposa não o impede de sair pela porta, direto ao encontro de Claire. No dia seguinte, jurando que Joan o teria deixado, ele a encontra determinada a ficar. Diz que, provavelmente, a sua avó não o perdoaria, mas que ela, sim, pois vivem em tempos modernos. A situação que ele a colocou concede a Jerry alguns privilégios, mas eles também se estendem a ela. Assim, Joan termina de se embonecar e sai para almoçar com um amigo em comum, definindo que a partir dali ambos terão um relacionamento aberto. Para consumar o novo combinado matrimonial, Arzner filmou uma das melhores cenas de vingança da história do cinema, mesmo que na época ela ainda não o soubesse. A diretora propõe a chegada triunfante de Joan de braços dados com nada mais, nada menos que Cary Grant, em uma de suas primeiras aparições na telona, como o atraente Charlie Baxter. Apesar da cena durar menos de dois minutos, a sua presença luminosa e entonação cativantes anunciam o grande astro que se tornaria, e é tempo suficiente para causar ciúmes em Jerry. Topando o convite de Baxter para seguirem a noite no Harlem, chega a vez de Joan brindar: Gentlemen, I give you the holy state of matrimony, modern style: single lives, twin beds and triple bromides in the morning - dando a receita de sucesso do casamento prafrentex: vidas e camas separadas associadas a doses triplas de sedativos no café da manhã.

Apesar dos problemas conjugais dos Corbett poderem ser contextualizados a partir de expectativas sociais de gênero e classe, e de questões mais subjetivas ligadas à frustração e o vício, o revés amoroso possui um sintoma, manifestado pela figura da sedutora Claire. O antigo flerte de Jerry aparece, primeiro, como memória. Jerry confessa para Joan que há alguns anos se envolveu com uma tal Claire Hempstead. Com ciúmes, Joan pergunta se ele guarda algum retrato dela, o que ele confirma. A cena seguinte mostra Jerry dirigindo-se com ressentimento à fotografia com dedicatória de Claire em seu apartamento, mas tentando dar a volta por cima, dizendo que conheceu alguém que é justamente o seu oposto. A próxima aparição da atriz também é como imagem, mas desta vez uma reprodução massificada, ao ilustrar a página inteira do jornal em que Jerry trabalha, atormentando-o. Sua forma de “carne e osso” só surge no momento em que é anunciada como a atriz principal da peça de Jerry - revelando-se, portanto, não mais para interpretar o seu papel de fantasma do passado, mas o da protagonista do futuro. O produtor de teatro assume que quando leu o roteiro não pode pensar em qualquer outra pessoa, a não ser Claire, como se cada palavra tivesse sido escrita tendo a musa em mente. Nessa reaproximação infiel entre criador e criatura, Claire continua a aparecer mesmo que não esteja em cena, nas vezes em que Jerry, entorpecido, a confunde com Joan. Na noite de estreia, Claire liga para garantir que Jerry chegou bem em casa e o dramaturgo tem a sensação de que se tornou, ele mesmo, Pigmalião, quando Claire repete a frase de sua personagem na peça: Sir, if I said yes, I should mean no. And If I said no, I should mean yes. But my silence is all true, and, for you, ao responder dubiamente se eles poderiam se encontrar naquela madrugada. Mesmo que sua presença na trama vá da ideia ao corpo, Claire é, desde sempre, toda imagem. O ato final da loira se passa numa gandaia no apartamento do casal, quando improvisa um esquete com Jerry. É ele quem propõe se Joan quer assistir a primeira cena de Claire no cinema, uma blague entre os amigos, que estão todos reunidos na cozinha. Quando o diretor diz Ação!, Jerry dá um beijo ardente em Claire, o último vexame, a gota d’água para a saga da Sra. Corbett. Joan decide deixar tudo para trás, convencida de que o marido nunca a amou - e retorna grávida para Chicago, sem conseguir contar a ele sobre a novidade.

Quando Joan vai embora de Nova York resta apenas a sua fotografia num porta-retrato. É à sua imagem que Jerry se dirige: ele devia ter dito as três pequenas palavras a ela desde sempre, eu te amo. Voltando a sua vida normal como jornalista, longe dos aplausos do público, Jerry precisa se reencontrar. Suas inúmeras tentativas de contato com Joan falham, salvaguardada pelo pai. As missivas e flores são enviadas cada dia por um novo remetente, que não é outra pessoa além do próprio Jerry, que já não engana mais a ninguém. É pelo próprio jornal que Jerry recebe a primeira notícia de Joan há meses: a herdeira Prentice havia dado à luz a um menino - o seu menino. Jerry descobre da existência do filho ao mesmo tempo que milhares de leitores desconhecidos. Sai em disparada para o hospital e é barrado pelo pai de Joan, que lhe dá as más notícias: o bebê havia morrido logo após o parto e, talvez, Joan também não sobreviva. Desesperado para revê-la, consegue driblar o pai e vai ao seu encontro. No quarto do hospital, o retrato de Jerry está acomodado na estante. Ele beija a mão de Joan que, adormecida, pensa que o gesto vem do pai - e clama pelo marido. Ele a acorda de volta para o mundo dos vivos: I’m here, Joannie, I love you. Comovida, Joan diz: Jerry! My babe… e seu olhar hesitante parece se lembrar da perda do filho. E repete: My babe!, sua mão toca o rosto do amado - como se a partir dali Jerry fosse, eternamente, seu.

    Jerry, afinal, precisa que as mulheres lhe digam o que fazer. O título da sua peça demonstra a sua confiança de que são elas quem determinam os limites quando se opõem, e assim desenham o seu destino. Na fatídica noite do adultério, ele implora a Joan que ela peça para ele ficar, o qual ela responde abrindo a porta. Uma outra cena, talvez uma das mais emblemáticas do filme e reveladora de uma tomada de posição importante de Arzner, acontece no momento da reunião de Jerry com Claire, no escritório de seu produtor em Nova York. Depois de elogiar a dramaturgia, a atriz pega Jerry pelo braço, o encaminha até o sofá, e faz uma série de sugestões para melhorar a participação cênica de sua personagem. No primeiro ato, por exemplo, ela não quer entrar acompanhada de seu par, mas fazer uma entrada triunfante, sozinha. Esse e outros apontamentos são trazidos para um Jerry que é todo ouvidos. A atitude de Claire desmonta a ideia do autor genial, que possui controle criativo total e que deve ser laureado por isso, demonstrando como a sua colaboração pode ir além da musa, de sua beleza ou de sua habilidade como atriz - ela também pode contribuir com ideias. Quando Joan se ocupa das atividades de manutenção do casal e insiste com o marido que ele deve escrever três páginas por dia, e não duas, ela dá as condições materiais e emocionais para que a imaginação do marido aflore. Ao construir imagens que possam dar a ver o trabalho das mulheres, Arzner dá a ver a si mesma, se afirmando como autora e artista que acredita na coletividade. Em diversas entrevistas, Arzner conta que quando começou a dirigir, seu maior desafio, como diretora mulher, era o de saber se a sua voz de autoridade seria ouvida no set, e se os atores respeitariam a sua condução das cenas. Sempre inventiva, para contornar o problema, ela trazia consigo um megafone para o estúdio, amplificando a sua voz, que continua ecoando forte até os nossos dias.




[1] Na cena em que Jerry convida os amigos Buck (Richard “Skeets” Gallagher) e Vi (Esther Howard) para uma festa de rejeição do seu manuscrito, com jantar servido por Joan, acidentalmente ele derruba o frango assado no chão e precisa sair para comprar alguma coisa no mercado mais próximo. Durante a sua ausência, há um momento de conexão entre Vi e Joan, que se abraçam ternamente e se consolam sobre problemas conjugais. As duas são interrompidas pela voz de Jerry gritando “Traição!” entrando pela porta da cozinha, espantando as duas mulheres, que se separam. No fim, ele estava apenas brincando sobre o fato de ter comprado comida enlatada de marca concorrente dos Prentice. Apesar do esclarecimento, mantém-se a sugestão de uma aproximação amorosa e cumplicidade entre as duas amigas.

[2] Agradeço ao Giovanni Comodo que primeiro me chamou a atenção para o interesse de Arzner em explorar as possibilidades do som nesse filme.

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Cineclube do Atalante: O Segredo da porta fechada

Cineclube do Atalante na Cinemateca em dose dupla neste sábado: às 16h, um filme de Dorothy Arzner e às 19h, um filme de Fritz Lang - em 16mm! Sempre seguido de uma conversa e com entrada franca.


O SEGREDO DA PORTA FECHADA

Dirigido por Fritz Lang.
* Sessão em 16mm (cópia do acervo da Cinemateca de Curitiba)

(Secret Beyond the Door, 1947, EUA, 99 min., drama/suspense, 14 anos.) 
Com Joan Bennett, Paul Cavanagh, Michael Redgrave.

Prestes a se casar com um amigo, a jovem Celia tira férias e viaja para o México. Lá ela conhece o homem dos seus sonhos, Mark, com quem se casa dias depois do primeiro contato. Os dois vão morar juntos na mansão dele, misteriosa e sombria como o dono. Com o passar do tempo ela vai desvendando os segredos do local, mas um quarto especial, sempre trancado, continua intrigando-a. 

Serviço:

CINECLUBE DO ATALANTE
“Quando a mulher se opõe” (1932), de Dorothy Arzner
Sábado, 06/04
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321-3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante
Apoio: @fcccuritiba

PROJETO REALIZADO COM RECURSOS DO PROGRAMA DE APOIO E INCENTIVO À CULTURA - FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA, PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA, MINISTÉRIO DA CULTURA E GOVERNO FEDERAL

Cineclube do Atalante: Quando a mulher se opõe

Cineclube do Atalante na Cinemateca em dose dupla neste sábado: às 16h, um filme de Dorothy Arzner e às 19h, um filme de Fritz Lang - em 16mm! Sempre seguido de uma conversa e com entrada franca.


QUANDO A MULHER SE OPÕE

Dirigido por Dorothy Arzner.

(Merrily We Go to Hell, EUA, 1932, 78 min., comédia/melodrama, 14 anos.)
Com Fredric March, Sylvia Sidney, Adianne Allen.

Jerry Corbett (Fredric March) é um alcoólatra que nunca superou a perda de seu antigo amor, Claire (Adianne Allen). Ele se casa com Joan (Sylvia Sidney), mas sua felicidade conjugal é abalada quando Claire surge novamente em sua vida.

Serviço:

CINECLUBE DO ATALANTE
“Quando a mulher se opõe” (1932), de Dorothy Arzner
Sábado, 06/04
Às 16h
Na Cinemateca de Curitiba
(Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1174 - São Francisco)
(41) 3321-3552
ENTRADA FRANCA

Realização: Coletivo Atalante
Apoio: @fcccuritiba

PROJETO REALIZADO COM RECURSOS DO PROGRAMA DE APOIO E INCENTIVO À CULTURA - FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA, PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA, MINISTÉRIO DA CULTURA E GOVERNO FEDERAL

sábado, 23 de março de 2024

Longe de Hollywood – Killer of Sheep (1978), Charles Burnett

 por Miguel Fernandes

We people who are darker than blue
Curtis Mayfield


Hollywood era de fato “a melhor coisa do mundo”. Sua qualidade estava no que ela dava de drama humano, nos gêneros diversos (policial, faroeste, musical) criados pelo gênio da indústria e expressados por ela de um modo próprio. Não sendo, porém, a bela coisa “coisa perfeita”, houve mesmo dentro dela alguns espasmos de consciência que revelaram espécie de mal-estar velado, não se curvando à mera idealização do american way of life e nem sequer limitando-se ao mero ufanismo da pátria: espasmos que expuseram – como nos provam os exemplos de um Ray, um Welles, um Minnelli – uma contradição fundamental daquela sociedade perfeita, ou “a incompatibilidade da moral e da sociedade capitalista”, como queria Jean Domarchi[1]. Sua beleza estava então, justamente, na sua contradição entre idealização e decadência.

O aforismo “há Hollywood e há Hollywood[2]”, que exprimiria dessa indústria sua ambivalência, poderia ser alterado de tal modo para “há Los Angeles e há Los Angeles”: cidade de estrelas ao centro-norte e o bairro de Watts ao sul. Isso para dizer que, mesmo dentro dos espasmos, quase não havia recorte de raça, e, se lembrarmos, com James Baldwin, que a história do negro nos Estados Unidos é a história dos Estados Unidos (história não muito bonita), percebemos que alguma coisa escapou dessa história do cinema – que é também a história dos EUA e dos americanos – e então “Hollywood” nos parece mais ainda um vulto incompleto. Esquecemos de algo, ou então pouco nos foi dado a ver; alguma coisa, porém, cuja ínfima parte nos é sugerida pela Hattie McDaniel de …E o Vento Levou (1939), um engraxate qualquer de Fallen Angel (1945) e o Stepin Fetchit de Judge Priest (1934). Por trás de todo o riso e benevolência estereotipados daqueles rostos havia vidas de dread and beauty [pavor e beleza] que escapavam das telas e fora delas existia, qualquer coisa que nos tira a vista dos repetidos sex symbols brancos de um metro e noventa (C. Gables, G. Coopers, C. Grants), das mocinhas chiques de sobretudo engomado, e nos leva à voz de Curtis Mayfield ou Bessie Smith, ou ao Harlem de James Baldwin, ou ao Watts de Charles Burnett. Porque, de certo modo, Killer of Sheep é essa parte que escapa, espécie de contraparte dessa história americana que Burnett vem nos dar a ver e lembrar, indiretamente, que há Los Angeles e há Los Angeles.

À guisa de história e contexto, valeria a pena citar brevemente as condições em que Killer of Sheep foi feito. O que é mais ou menos conhecido em torno de sua realização e lançamento é que 1) Burnett, estudante da UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles), queria realizá-lo como conclusão dos seus anos de estudo; 2) que ele estava inserido no grupo de estudantes-diretores (entre eles Julie Dash e Billy Woodberry) que veio a se chamar L.A. Rebellion, cuja recorrência temática conversava com a história do negro norte-americano, em contraposição à sua representação na indústria; e 3) que Killer of Sheep, então realizado de forma intermitente no hiato de 1972 a 1977-78, só teria sido lançado oficialmente em 2007 (porque à época não havia dinheiro para financiar os direitos autorais da música).

Diríamos
dele, com base nesses aspectos, que é um filme independente: no sentido financeiro, sim, a acepção imediata da palavra quando se trata de filmes (o orçamento foi em torno de 10 mil dólares); mas também no sentido de sua abordagem e postura, na medida em que independe do léxico dos blaxploitations da época ou de qualquer cartilha educacional no que diz respeito à questão racial (uma obra que encontraria valor, por exemplo, no que ela teria a ensinar à população branca sobre racismo).

No filme, o que vemos é Stan (Henry G. Sanders), cuja vida é dividida entre seu trabalho num matadouro de ovelhas, seus afazeres domésticos, coisas ordinárias (como a compra de um motor usado) e sua família. À medida que Stan percorre as cenas, somos dados a conhecer outras pessoas, em variadas situações, que compõem aquele ambiente. A história dele é a história dos outros. Salta à nossa compreensão que o tipo de trabalho de Stan o aliena de si próprio, faz dele um abúlico quase indisposto a lidar com a família. Nessa abulia e alienação, é justo que seja o título Killer of Sheep: não há sequer artigo definido (The); a vida de Stan e sua identidade é sugada e reduzida pela inércia do trabalho.

(Para pôr parênteses, lembre-se do que primeiro salta aos olhos: aquela textura a preto e branco que vem tingir a tela. Lembro do exemplo de um mau filme, Carmen Jones[3] [1954], no que toca à questão da cor: aquelas portentosas cores de mau gosto e bricabraques vazios, que sugeriam dos negros uma “sensualidade” inata, certo exotismo e capricho dos produtores, tudo aquilo se perde. É certo que a cor só pode o mais das vezes sugerir um impacto psicológico, e não pede justificativa exatamente literal [justificada por simbolismos diretos, por exemplo]; é certo que, quando foi feito Killer of Sheep, o preto e branco não era necessidade, era escolha; e é certo que quanto maiores as possibilidades mais restrições é preciso se impor. Há, sim, o impacto psicológico da ausência de cor, esse despojamento da textura que se reflete no tema e na abordagem; mas, por mero capricho ou desvio de pensamento [o pecado da crítica, infelizmente] fui levado a crer que se tratava tanto de necessidade quanto de escolha: uma escolha, vá lá, mas regida pela necessidade de recobrança histórica, o reaver de um passado em que o rosto negro a preto e branco, no que diz respeito ao cinema, raramente encontrava dignidade. Todos os planos do rosto de Kaycee Moore, a linda esposa de Stan, “justificam” essa leitura, quer tenha ou não sido o exato intuito de Burnett. Longe de Hollywood.)

Tudo procede, então, sem um desenvolvimento dramático que chamaríamos clássico (no que teria de relação entre causa e efeito), e esse procedimento algo diferente seria justificado pela afirmação que Burnett ele próprio dera em entrevista: “Queria fazer um filme que não refletisse meus valores, mas que refletisse o que acontecia na comunidade sem que eu me impusesse nisso”. O objetivo, em vez de análise, é constatação. Disso há que se perceber que, diante dessa beleza morosa e doce-amarga – nada se concretizando –, também restituímos desses fragmentos algumas parcelas de vida daquela comunidade: a misteriosa e hostil rivalidade entre meninos e meninas na infância; a brincadeira dos meninos tensionada de perigo – guerra de pedras, saltar do abismo que separa uma casa da outra; o casal briguento (“A única coisa que aparenta bela quando morre é uma rosa”); rapazes roubando a TV e ameaçando um senhor; mas também duas crianças conversando entre si, uma garotinha imitando e cantando a música do rádio enquanto mamãe a observa, o papai dando resposta poética à pergunta da criança (“é o Diabo batendo em sua esposa”). Não há lição alguma; o que emana é um respeito por cada acontecimento, por cada pessoa filmada, por cada acontecimento que interliga cada pessoa filmada.

“Ele [o negro]”, na acepção geral dos EUA, “é um problema social, não pessoal ou humano” (para ficarmos ainda em James Baldwin). A emblemática cena da gravidez que conclui o filme, em que passamos do gesto de um ventre crescendo para a ação de Stan no trabalho (matando ovelhas), comporta duas das únicas ações que realmente se concretizam (nesse filme em que ação nenhuma se concretiza): ato de concepção e ato de morte, início e fim. O mérito de Killer of Sheep, pois, é o de não tratar os negros como tipo de receptáculo idealizado, mas, em vez disso, tratá-los como suscetíveis a tristeza e deleite, dread and beauty, a boas e más ações, tensionados entre vida e morte expressos nessa cena emblemática. Seu mérito, em outras palavras, é não encerrá-los em alguma categorização que lhes negue a vida, tratando-os não como mero problema social, mas reconhecendo-os como seres humanos.

Mérito elementar de um filme que trata de coisas elementares.


[1] Le fer dans la plaie [O dedo na ferida], Cahiers du Cinéma N°63.

[2] Jacques Rivette, Notes sur une révolution [Notas sobre uma revolução]. Cahiers du Cinéma N°54.

[3] O filme, dirigido por Otto Preminger, é comumente citado como um dos primeiros filmes de elenco inteiramente negro em Hollywood. O já citado James Baldwin lhe dispensou mordaz e ambígua crítica em seu livro Notas de um Filho Nativo, cujas páginas ecoam neste texto e cuja menção se faz justa.