quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Debatendo "Ciúme, o Inferno do Amor Possessivo"

Encobrir e revelar
(Texto sobre o filme “Ciúme, o inferno do amor possessivo” de Claude Chabrol, 1994)

“Ciúme” é um exercício visceral de manipulação criativa da linguagem cinematográfica. Seu autor, Claude Chabrol (1930-2010), foi um dos maiores diretores-estudantes de sua geração, cuja autoconsciência do estilo e seus efeitos, é usada para oferecer mistérios fascinantes a seus espectadores. Este texto pretende destacar alguns aspectos de sua mise-en-scène, elemento discursivo essencial para o entendimento da noção de estilo no cinema.
Por mise-em-scène compreendemos, grosso modo, o jogo de corpos e objetos dentro do plano, suas relações entre si, seu eventual movimento e suas interseções com o extra-campo, o espaço fora da tela. A mise-en-scène clássica, tradição que Chabrol alimenta e da qual foi alimentado, é aquela que submete o jogo na frente da câmera à narração, dando andamento à história e transcendendo-a.
Tomemos as primeiras cenas do filme: Nelly (Emanuelle Béart) chega ao novo hotel com Marylin (Nathalie Cardone) e enquanto Paul (François Cluzet) lhes apresenta as obras, alguns olhares definem de maneira expressiva e sutil seu objeto de interesse. No tour, um plano, porém é determinante na apresentação dos personagens e suas relações: No primeiro plano, a cabeça de Nelly de costas para a câmera; no fundo Marylin sai fechando a porta enquanto que; no plano intermediário, Paul dá um passo à frente em direção à câmera, olhando nos olhos de Nelly.

A posição de domínio cênico de Paul sobre Nelly estabelece uma relação de poder, enquanto que a saída de Marylin é simbólica. Marylin representa o fantasma do passado permissivo e promíscuo de Nelly, uma má influência que Paul inutilmente tentará encobrir. No último plano do casamento, por exemplo, o pedalinho desenha o afastamento do casal em relação à câmera, um isolamento. Quando a câmera termina a panorâmica para mostrar os convidados acenando, vemos uma mulher isolada no extremo esquerdo do quadro. É Marilyn: a única que não acena.


Esta seqüência, a propósito, nos é apresentada em planos curtos, cheios de movimentos circulares perpetrados pelos corpos dos protagonistas. O destaque está no protagonismo de Paul, que conduz Nelly com leveza e alegria. 


Este movimento vai desaparecendo conforme o ciúme enrijece o personagem, deixando no lugar movimentos duros e desengonçados. Do ponto de vista da encenação, “Ciúme” é a história de um movimento que cessa: dois corpos gravitam entre si; quando um pára, o outro é violentamente obrigado a parar.
A perda da alegria (e conseqüentemente do privilégio cênico) de Paul é definida em duas cenas: após flagrar Nelly e Martineau (Marc Lavoine) na sala escura, sua atitude é se afastar lentamente, resignado, de costas para a câmera


, ignorando as demandas do cenário, 


até parar distante no píer, reduzido pela vergonha.


Posteriormente, após a crise de nervos e o tapa ao pé da escada, Paul se encolhe no quarto escuro: primeiro no fundo do quadro; 


em seguida, recolhido à moldura do espelho na parede (o espelho é o locus privilegiado do personagem durante o filme inteiro).


Nelly entra e liga a luz mostrando Paul ofuscado pela grande luminária, espremido no extremo inferior do quadro. 


Quando Nelly interpela diretamente o marido sobre o significado do escândalo, ele é subitamente lançado ao centro de um plano que procurou a cena inteira, evitar.


À medida que o ciúme vai consumindo Paul, Nelly se torna um objeto opaco para o seu (e o nosso) olhar. Os mecanismos de campo x contracampo privilegiam o que Nelly esconde na dimensão real e revela nos delírios de Paul e conseqüentemente, do filme.
Numa das seqüências mais radicalmente expressivas, Paul segue Nelly, que havia saído para visitar sua mãe. Um dos planos mostra Nelly subindo a rua ao fundo e à esquerda, enquanto Paul se espreme contra um muro, no primeiro plano à direita. No plano intermediário, no centro do quadro, Chabrol posicionou uma garotinha brincando com uma bola, numa espécie de comentário irônico em contraponto ao sentido dramático do plano. 


Mas por quê? O que significa esta imagem?
Num plano maior: o que significa uma imagem cinematográfica? Para um realizador a imagem é o infinito. É a partir dela que se constrói o mundo que experienciaremos na duração do filme e é através dela que  brinca com nossas perspectivas e emoções. Como no jogo divino de revelar e encobrir da mise-en-scène.
Como Chabrol com sua bola colorida.

Miguel Haoni
(Cineclube Sesi, 2012)

Nenhum comentário:

Postar um comentário