sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Aos pés do gigante

Texto sobre "Um Olhar a Cada Dia" de Theo Angelopoulos (1995)

"Um olhar a cada dia" reforça a dimensão heroica do cinema de Theo Angelopoulos ao abordar a aventura de um cineasta em busca do primeiro filme grego, realizado pelos irmãos Manakis, quase cem anos depois. A odisseia do protagonista (no filme chamado de “A” - uma clara referência autobiográfica) remonta à poesia épica grega, ao concatenar o movimento maior, externo, repleto de paisagens hostis, dificuldades, aliados e antagonistas, a um movimento menor, internalizado, que reúne a dor da obsessão e a busca por sentido.No cinema, tal equação sempre esteve na base dos faroestes clássicos americanos de John Ford a Clint Eastwood e do pós-faroeste existencialista moderno de Michelangelo Antonioni a Wim Wenders. A diferença em Angelopoulos é que tal mitologia configura uma reflexão sobre as funções das imagens e de seus observadores privilegiados, os cineastas.
 “A” persegue o filme (supostamente perdido) dos Manakis por acreditar que ali haveria uma inocência do primeiro olhar. No universo destruído, abandonado e brutal do leste europeu, tais imagens remeteriam a outro tempo e lugar e dariam sentido para um realizador continuar seu trabalho.
As associações entre “A” e sua aventura e Angelopoulos e seu filme são inúmeras. Angelopoulos reencontra suas raízes balcânicas e insere isto em sua encenação através do exercício mnemônico da rememoração em presença na qual o personagem adulto anda por passagens de sua memória como um fantasma. Tal recurso é uma referência a um de seus ancestrais cinematográficos, Ingmar Bergman e seu “Morangos Silvestres”. Entretanto no contexto do filme, tais passagens surgem como questões epistemológicas: um cineasta fabrica imagens ou elas chegam até o filme através de seu olhar (olhar internalizado)? A atitude de Angelopoulos em toda a sua filmografia é como a dos irmãos Manakis.
Seus filmes pretendem primeiramente “mostrar” a realidade, a paisagem e o homem. Entretanto, obviamente, para chegar a determinados lugares os artifícios cênicos são totalmente necessários. Um princípio não anula o outro.
Tomemos, por exemplo, o grande tableau vivant na festa de ano novo: os anos passam sem corte, através de saltos temporais e modulações da mise-em-scène. Tal lógica obedece às regras da memória do personagem, evocadas pelo cenário e não às convenções diegéticas realistas. No filme imagens alimentam imagens, seja dentro ou fora do indivíduo. O registro (nunca confundir com mero registro) sócio-histórico partilha a mesma lógica cênica do registro interior. E qualquer encontro ou despedida vira um episódio homérico em virtude do onipresente gigante do passado e de seus passos inexoráveis rumo ao futuro.
Na tragédia grega (Angelopoulos incluso), a memória do passado macula todos os movimentos dos heróis. Suas lutas são contra o destino, personagem cruel e incontornável tanto no rumo a Ítaca quanto na recente história da esfacelada União Soviética.

Miguel Haoni

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