quinta-feira, 16 de maio de 2013

NASCIMENTO DE UMA NOVA VANGUARDA: A CAMÉRA-STYLO


por Alexandre Astruc

O que me interessa no cinema é a abstração.

Orson Welles
É impossível deixar de ver que algo está acontecendo no cinema. Corremos o risco de nos tornarmos cegos diante da produção corrente, que mostra todos os anos o mesmo rosto imóvel, onde o insólito não tem vez.

Ora, o cinema hoje tem um novo rosto. Como se vê isso? Basta reparar. É preciso ser crítico para não ver esta transformação espantosa do rosto, que acontece sob nossos olhos. Quais são as obras atravessadas por essa nova beleza? Precisamente aquelas que a crítica ignora. Não é por acaso que de A Regra do Jogo de Renoir aos filmes de Orson Welles, passando por As Damas do Bois de Boulogne, tudo aquilo que traceja as linhas de um novo futuro escapa a uma crítica da qual, de qualquer forma, não se poderia esperar outra coisa.

Mas é significativo que as obras que escapam às bênçãos da crítica sejam aquelas sobre as quais nós somos alguns a estar de acordo. Nós lhes atribuímos, se quiserem, um caráter anunciador. É por isso que eu falo de vanguarda. Há vanguarda toda vez que acontece algo de novo...

Precisemos. O cinema está a caminho de tão simplesmente tornar-se um meio de expressão, isso o que foram todas as artes antes dele, isso o que foram em particular a pintura e o romance. Após ter sido sucessivamente uma atração de feiras, uma diversão análoga ao teatro de boulevard, ou um meio de conservar imagens da época, ele se torna, pouco a pouco, uma linguagem. Uma linguagem, ou seja, uma forma na qual e pela qual um artista pode exprimir seu pensamento, por mais que este seja abstrato, ou traduzir suas obsessões do mesmo modo como hoje se faz com o ensaio ou o romance. É por isso que eu chamo a esta nova era do cinema a Caméra stylo. Essa imagem tem um sentido bastante preciso. Ela quer dizer que o cinema irá se desfazer pouco a pouco dessa tirania do visual, da imagem pela imagem, da narrativa imediata, do concreto, para se tornar um meio de expressão tão flexível e sutil como o da linguagem escrita. Esta arte, dotada de todas as possibilidades, porém prisioneira de todos os preconceitos, cessará de permanecer cavando eternamente o pequeno domínio do realismo e do fantástico social que lhe é acordada nos confins do romance popular quando deixarmos de fazer dela o domínio de eleição dos fotógrafos. Nenhum domínio lhe deve ser interdito. A meditação mais despojada, um ponto de vista sobre a produção humana, a psicologia, a metafísica, as idéias, as paixões são muito precisamente de seu interesse. Ou melhor, diremos que essas idéias e visões de mundo são tais que hoje somente o cinema pode dar conta delas; Maurice Nadeau dizia num artigo da Combat: “Se Descartes vivesse hoje, ele escreveria romances.” Eu peço desculpas a Nadeau, mas hoje já um Descartes se trancaria no seu quarto e com uma câmera 16 mm. e película escreveria o discurso do método em filme, pois seu Discurso do Método seria tal hoje em dia que somente o cinema poderia convenientemente o exprimir.

Deve-se compreender que o cinema até hoje foi apenas um espetáculo. O que se relaciona ao fato de que todos os filmes são projetados em salas. Contudo, com o desenvolvimento dos 16 mm. e da televisão, não está distante o dia em que cada pessoa terá em suas casas aparelhos de projeção e alugará, na livraria da esquina, filmes escritos sobre não importa que tema, não importa qual forma, sejam críticas literárias, romances, ensaios da matemática, história, variedades, etc. Por isso não é mais possível falar de um cinema. Haverá cinemas como hoje há literaturas, pois o cinema como a literatura, antes de ser uma arte particular, é uma arte que pode exprimir qualquer setor do pensamento.

Essa idéia de cinema exprimindo o pensamento talvez não seja nova. Feyder já dizia: “Eu posso fazer um filme sobre O Espírito das Leis”. Mas Feyder sonhava numa ilustração de O Espírito das Leis pela imagem tal como Eisenstein pensava numa ilustração d’O Capital (ou em uma imagérie). Nós dizíamos que o cinema está a caminho de encontrar uma forma onde ele se torne uma linguagem tão rigorosa que o pensamento possa ser escrito diretamente sobre a película, sem mesmo passar por aquelas pesadas associações de imagens que fizeram as delícias do cinema mudo. Em outros termos, para mostrar o tempo decorrido não é preciso mostrar a queda das folhas seguida do florescer dos pomares, e para indicar que o herói deseja fazer amor, há outras maneiras de proceder para além daquela que consiste em mostrar uma caçarola de leite a transbordar, como Clouzot fez em Crime em Paris.

A expressão do pensamento é o problema fundamental do cinema. A criação dessa linguagem preocupou todos os teóricos e autores de cinema desde Eisenstein, até os roteiristas e adaptadores do cinema sonoro. Mas nem o cinema mudo, por ser prisioneiro de uma concepção estática da imagem, nem o sonoro clássico, como existe ainda hoje, puderam resolver convenientemente o problema. O cinema mudo acreditara ter conseguido pela montagem e a associação de imagens. É conhecida a célebre declaração de Eisenstein: “A montagem é para mim o meio de dar movimento (isto é, a idéia) a duas imagens estáticas”. E quanto ao sonoro, ele se contentou em adaptar os procedimentos do teatro.

O evento fundamental destes últimos anos foi a tomada de consciência que está se concretizando sobre o caráter dinâmico, isto é, significativo, da imagem cinematográfica. Todo filme, por ser um filme em movimento, ou seja, que se desenrola num tempo, é um teorema. Ele é o ponto de passagem de uma lógica implacável, que vai de uma extremidade a outra dela mesma, ou melhor ainda, de uma dialética. Essa idéia, essas significações, que o cinema mudo tentou criar através de associações simbólicas, nós compreendemos que elas existem na imagem mesma, no desenrolar do filme, em cada gesto dos personagens, em suas palavras, nos movimentos de câmera que ligam os objetos e os personagens a estes. Todo pensamento, como todo sentimento, é uma relação entre um ser humano e um outro ser humano ou certos objetos que fazem parte do seu universo. É explicitando essas relações, desenhando as tangentes, que o cinema pode ser verdadeiramente o lugar de expressão de um pensamento. A partir de agora é possível dar ao cinema obras equivalentes, pela profundidade e pelas suas significações, aos romances de Faulkner, aos de Malraux, aos ensaios de Sartre ou de Camus. Aliás, temos sob os olhos um exemplo significativo: o de Espoir de Malraux, onde possivelmente pela primeira vez a linguagem cinematográfica dá um equivalente exato da linguagem literária.

Examinemos agora as concessões às falsas necessidades do cinema.

Os roteiristas que adaptam Balzac ou Dostoiévski desculpam-se pelo tratamento insensato que dão às obras a partir das quais eles fizeram seus roteiros, alegando certas impossibilidades do cinema em dar conta de conteúdos psicológicos ou metafísicos. Em suas mãos, Balzac vira uma coleção de gravuras, onde a moda tem mais importância, e Dostoiévski de repente se assemelha aos romances de Joseph Kessel, com a embriaguez russa nas boates noturnas e as corridas detroïka na neve. Ora, essas interdições devem somente à preguiça de espírito e à falta de imaginação. O cinema atual é capaz de dar conta de qualquer tipo de realidade. O que nos interessa no cinema hoje é a criação dessa linguagem. Não pretendemos refazer documentários poéticos ou filmes surrealistas toda vez que possamos escapar das necessidades comerciais. Entre o cinema puro dos anos 1920 e o teatro filmado, existe lugar para o cinema que se liberta.

O que implica, entenda-se bem, que o roteirista faça ele mesmo seus filmes. Ou melhor, que não existam mais roteiristas, pois num tal cinema essa distinção entre autor e roteirista não tem mais sentido. A mise en scène não é mais um meio de ilustrar ou de apresentar uma cena, mas uma verdadeira escritura. O autor escreve com a câmera como o escritor escreve com a caneta. Como é que nesta arte, em que a banda visual e sonora se desenrola, desenvolvendo-se através de uma história (ou sem história, isso pouco importa) e de uma certa forma, de uma concepção de mundo, poderíamos fazer diferença entre aquele que pensou a obra e aquele que a escreveu? Imagina-se um romance de Faulkner escrito por alguém senão Faulkner? E Cidadão Kane funcionaria noutra forma exceto aquela a qual Orson Welles lhe deu?

Eu sei bem que o termo “vanguarda” ainda fará pensar nos filmes surrealistas e nos filmes ditos abstratos do primeiro pós-Guerra. Mas essa vanguarda já é uma retaguarda. Ela procurava criar um domínio próprio para o cinema; nós procuramos, ao contrário, entendê-lo e fazer dele a linguagem mais vasta e mais transparente possível. Problemas como a tradução dos tempos dos verbos, como as ligações lógicas, interessam-nos muito mais do que a criação de uma arte visual e estática sonhada pelo surrealismo, que, aliás, não fazia mais do que adaptar para o cinema as pesquisas da pintura e da poesia.

Voilà. Não se trata de uma escola, nem mesmo de um movimento, talvez se trate simplesmente de uma tendência. De uma tomada de consciência, de uma certa transformação do cinema, de um futuro possível, e do desejo que nós temos de apressar esse futuro. Certamente nenhuma tendência pode se manifestar sem obras. Essas obras virão, elas verão o dia. As dificuldades econômicas e materiais do cinema criam esse paradoxo espantoso de poder falar do que ainda não existe, pois se nós sabemos o que nós queremos, nós não sabemos se, quando e como nós poderíamos fazê-lo. Contudo é impossível que o cinema não se desenvolva. Essa arte não pode viver com os olhos voltados para o passado, remoendo lembranças, nostalgias de uma época encerrada. Seu rosto já está voltado para o futuro e, tanto no cinema como fora dele, não há outra preocupação possível exceto o futuro.

(L’écran français n° 144, 30 de março de 1948. Traduzido por Matheus Cartaxo)

Nenhum comentário:

Postar um comentário