segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Análise do som em cena do filme “O Hospedeiro”, de Bong Joon-Ho (2006)


O excesso de sons e a estridência dos volumes são dados constitutivos dos filmes blockbuster.  Grande parte de seu efeito espetacular é amparada por um tratamento sonoro hiperagressivo no qual diálogos, ruídos e música são amplificados para extrair reações emocionais exageradas.
Uma das mais impressionantes exceções é o filme “O Hospedeiro”, maior bilheteria na história do cinema sul-coreano. Tributário à estrutura das megaproduções hollywoodianas, o filme é ao mesmo tempo uma das obras mais criativas da cinematografia recente oriental, constituindo-se um caso exemplar do que chamaremos “blockbuster de arte”.
A excelência técnia (resultante do grande orçamento) encontra a ousadia estética (busca de uma direção expressiva) em todos os aspectos, principalmente na banda sonora. Como um jovem mestre do suspense, Bong (e sua equipe, naturalmente) usa o silêncio e o som numa intensidade emocionalmente melódica e um dos momentos mais significativos é provavelmente o da primeira aparição do monstro no filme.
Aos onze minutos de projeção vemos a criatura pendurada na ponte pela primeira vez. O som ambiente, com as vozes baixas, distantes e suaves é abruptamente quebrado pelo grito de avô e neta em outro núcleo dramático. O faux-raccord sonoro çiga a calma suspensão dos que observam a criatura do lado de fora com a alegria da dupla que, dentro de um trailer, assiste à transmissão televisiva de uma disputa de arco e flecha.
Na sequencia, o monstro se desprende, chega à margem e desaparece de forma anormalmente calma, até que é flagrado correndo sobre o trapiche, atropelando as pessoas. Sua aproximação do ponto de vista do protagonista é acompanhada pelo surgimento e gradual crescimento da música (que até então não existia). As batidas constantes e o tom grave harmonizam-se com os agudos gritos das pessoas e o guinchar do monstro. O barulho resultante é contrapontuado por três brilhantes deslocamentos do ponto de escuta.
No meio do caos somos subitamente lançados para uma idílica paisagem sonora com uma canção ao piano e o som das asas de pássaros ao fundo. Uma moça que escuta a música em fones de ouvido aparece na tela sendo bruscamente arrancada de sua distração pelo monstro. Saímos do ponto de escuta subjetivo dela e retornamos à ambiência agitada.
Em seguida, entramos num metrô de superfície, de onde a cena é observada à distância pelos usuários. Neste momento os sons da confusão são abafados e a voz metálica da gravação no metrô traz de volta os agudos para uma paisagem que se reduziu quase que exclusivamente aos graves.
O terceiro e mais complexo deslocamento acontece pouco depois da confusa colaboração do protagonista com um soldado americano (cujos gritos da namorada, que não vemos, ampliam o sentimento de horror). Após a decepção no campeonato de arqueirismo, a garotinha sai silenciosamente do trailer e chuta uma lata de cerveja. O filme nos permite ouvir, com uma sádica tranquilidade, o chiado da cerveja vazando sob a pressão de um furo na lata. Enquanto a menina em direção ao objeto, a banda sonora vai sendo gradualmente invadida pela gritaria do ambiente. Esta pausa no barulho e o destaque para a lata de cerveja (objeto que a partir daqui será o leitmotiv da ligação entre pai e filha) é o prelúdio para o clímax da sequencia.
Em câmera lenta, o protagonista cruza a multidão em fuga e agarra a mão da garotinha, sua filha. Conforme fogem do monstro, um conjunto de cordas (violinos e violoncelos) vai dominando a trilha sonora num crescendo emocionante. O pai tropeça, levanta, recupera a mão da menina e segue até perceber que a mão na sua não é a da filha. Quando vira para trás as cordas chegam ao máximo volume e explodem num silêncio absoluto. A menina se levanta, enquanto que o monstro, em ralenti, corre na sua direção. As passadas ocas do monstro emulam batidas de coração, preenchendo o silêncio com uma reverberação claustrofóbica. Quando puxa a menina pela direita do quadro, um pombo voa em sentido contrário, deixando-nos ouvir o farfalhar suave de suas asas, e após um longo e silencioso salto, num plano sem oxigênio, o monstro cai ruidosamente no rio, deixando a cena recuperar depois de muito tempo, o som ambiente.
Esta paisagem sonora, em seu trajeto único, investe ao mesmo tempo na comunicação espetacular e numa experimentação sensível, provando que as ambições comerciais não precisam ser sinônimas de pobreza estética e nem serão, enquanto artistas da imagem e do som se apropriarem destes mecanismos.

Miguel Haoni, 2012

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