quinta-feira, 10 de outubro de 2013

O pequeno gigante


Texto sobre Charles Chaplin e “Luzes da Cidade” (1931)


Em 1927, o filme “O Cantor de Jazz” inaugurou oficialmente um novo ciclo na história do cinema. A partir dele iniciou-se a hegemonia dos filmes totalmente falados, o que representou o fim para uma geração de cineastas que não conseguiram se adaptar à nova tecnologia.
Dentre os sobreviventes nenhum foi mais resistente ao som do que Charles Chaplin. Seu personagem Carlitos garantiu-lhe o posto de rei da pantomima, devido ao caráter universal de sua linguagem corporal. De Tóquio a Belém, milhares de pessoas riam e choravam das graças do vagabundo. Como poderia o seu autor lhe atribuir uma voz, um sotaque, uma língua?
Para Chaplin isso representaria a morte de Carlitos. Sua solução foi simplesmente ignorar as falas e utilizar a música e os efeitos sonoros sincronizados de forma muito mais criativa que os seus pares hollywoodianos.
Na década de 30, enquanto que a demanda por filmes sonoros aumentava, Chaplin insistentemente lutava pela sobrevivência de Carlitos, legando no período seus filmes mais criativos e elaborados: “Luzes da Cidade” em 1931 e “Tempos Modernos” de 1936.
Os títulos são reveladores do interesse de Chaplin em entender os paradoxos da modernização desenfreada das grandes metrópoles e suas decorrentes crises sócio-econômicas. Tal característica associada ao lirismo de Carlitos o colocou na vanguarda daquilo que na França recebeu o nome de “realismo poético” influenciando autores como Jean Renoir (“Tire-au-flanc”) e Jean Vigo (“Zero de Conduta”). Sua influência surge também quando anos mais tarde na Itália, a representação realista é revigorada por cineastas como Vittorio de Sica (“Humberto D.”) ou Federico Fellini (“A Estrada”) na gênese do cinema moderno.
Nenhum descendente ou mesmo contemporâneo, conseguia, porém, igualar Chaplin na sua força expressiva. Charles Chaplin, ator e diretor, era dois gênios em um (isso se ignorarmos seus trabalhos como roteirista, músico e produtor).
Seu domínio da linguagem clássica tornava seus filmes fluidos e ágeis. A decupagem perfeita (divisão da cena em planos) levava o espectador a experimentar a mais sutil modulação dos sentimentos impressos na tela – o campo x contra-campo final em “Luzes da Cidade” é o auge disto.

Seu triunfo maior, entretanto era a mise-em-scène. Cada gag de Carlitos é uma exploração absolutamente criativa do tempo-espaço cinematográfico. Tomemos como exemplo a cena da montra em “Luzes da Cidade”. Enquanto Carlitos procura a melhor posição para observar o nu da escultura, um alçapão desce e sobe atrás dele. Apesar de ser uma gag clássica do cinema mudo, em Chaplin ela atinge um nível de suspense absurdo em função da perfeição coreográfica e da duração do plano. O desfecho do plano-sequencia, em que Carlitos repreende o operário até que sua estaura é totalmente revelada pela subida da montra, é o limite da exploração de objetos cênicos, rivalizando com os mestres Buster Keaton (“Sherlock Jr.”) e seu herdeiro chinês, Jackie Chan (“Arrebentando em Nova York”).
Para Chaplin, entretanto nenhum objeto cênico era mais rico em possibilidades que o corpo de Carlitos. Sua disposição atlética o permitia extrair graça das mais improváveis situações. O personagem era ao mesmo tempo medíocre (estando no Rolls-Royce rouba a guimba de charuto do chão), aristocrático (espana com um lenço o banco em que vai dormir), romântico (sacrifica-se pela vendedora cega), violento (arruma briga no restaurante), valoroso (salva a vida do milionário) e de uma despreocupada iconoclastia (destrói a ritualística inauguração de um monumento) sem recorrer a uma linha de texto, confiando exclusivamente no seu talento como realizador clássico e seu infinito repertório de piadas físicas.
Tais habilidades encontram seu apogeu neste “Luzes da Cidade”. O filme é praticamente um enfileiramento de set-pieces. Qualquer cena carrega sozinha toda a graça do filme, do cinema de Chaplin e da arte das imagens em movimento.

Miguel Haoni, 2011

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