quinta-feira, 26 de junho de 2014

GEOMETRIA DA FORÇA


Simone Weil e Abel Ferrara (fragmentos)

O verdadeiro herói, o verdadeiro tema, o centro da Ilíada é a força. A força empregada pelo homem, a força que escraviza o homem, a força diante da qual a carne do homem diminui. Nessa obra, em todos os momentos, o espírito humano aparece modificado por suas relações com a força, como que varrido, tornado cego, pela própria força que ele imaginou que poderia controlar, deformado pelo peso da força a qual ele se submete. (...)

Definir força – é aquele x que transforma qualquer um que se submete a ela em uma coisa. (...) Ela o transforma num cadáver. Alguém esteve aqui, e no minuto seguinte não há absolutamente ninguém. (...) Da primeira propriedade [da força] (a capacidade de transformar um ser humano numa coisa pelo simples método de matá-lo) brota outra..., a capacidade de transformar um ser humano numa coisa enquanto ele ainda está vivo. Ele está vivo, ele tem uma alma; e, ao mesmo tempo, ele é uma coisa... E no que diz respeito à alma, que casa extraordinária a força encontra nela! Quem pode dizer o quanto custa, a cada momento, acomodar-se a essa residência, contorcer-se e curvar-se, quanto dobrar-se e enrugar-se são necessários para isso? Ela não foi feita para morar dentro de uma coisa; se ela o faz, diante da pressão da necessidade, não há um único elemento de sua natureza que não seja violentado...

Talvez todos os homens, pelo simples fato de nascerem, destinam-se a sofrer violência; ainda assim, esta é uma verdade para a qual a circunstância fecha os olhos dos homens. (...) Eles têm em comum uma recusa em acreditar que ambos pertencem à mesma espécie: os fracos não vêem relação entre si mesmos e os fortes, e vice-versa. (...) [Os fortes], empunhando o poder, não suspeitam do fato que as conseqüências de seus feitos vão finalmente retornar a eles. (...) [Mas eventualmente isso acontece, e] nada, nenhum escudo, pode manter-se entre eles e as lágrimas.

Essa retribuição, que tem um rigor geométrico, que opera automaticamente para penalizar o abuso da força, foi o tema principal do pensamento grego. É a alma do épico. (...) Para os pitagóricos, para Sócrates e para Platão, foi o ponto de partida da especulação sobre a natureza do homem e do universo. (...) Nos países orientais que estão impregnados pelo budismo, é talvez essa idéia que tem existido sob o nome de karma. (...) O Ocidente, entretanto, perdeu isso, e nem tem mais uma palavra para expressá-lo em nenhuma de suas línguas: concepções de limite, medida, equilíbrio, que deveriam determinar a conduta de vida são, no Ocidente, restritas a uma função servil no vocabulário de técnicos. Nós somos apenas geômetras da matéria; os gregos eram, mais do que tudo, geômetras em seu aprendizado da virtude...

Assim, a violência oblitera qualquer um que sinta seu toque. Ela parece tão externa àquele que a emprega quanto ao que dela é vítima. E daí brota a idéia de um destino diante do qual tanto o executor quanto a vítima encontram-se igualmente inocentes. (...), irmãos na mesma miséria. (...)

A amargura [da 
Ilíada] é a única amargura justificável, pois ela brota das sujeições do espírito humano à força, ou seja, em última análise, à matéria. Essa sujeição é o que une a todos. (...) Ninguém na Ilíada é poupado dela, assim como ninguém na Terra. (...) O sentido da miséria humana é uma pré-condição da justiça e do amor... Apenas aquele que mediu o domínio da força, e sabe como não respeitá-la, é capaz de amor e justiça.

Aqueles que crêem que o próprio Deus, desde que se tornou humano, não pôde manter a severidade de seu destino diante de seus olhos sem tremer de angústia, deveriam entender que as únicas pessoas que podem parecer que se elevam acima da miséria humana são aqueles que mascaram a severidade do destino de seus próprios olhos com a ajuda da ilusão, da embriaguez ou do fanatismo. Ninguém que não esteja protegido pela armadura de uma mentira pode sofrer a força sem ser atingido até a alma por ela. A graça pode prevenir que esse sopro nos corrompa, mas não pode prevenir a ferida.

Simone Weil, "A Ilïada ou O poema da força". Escrito em 1939, a propósito da iminente guerra. Assinado com um anagrama, Émile Novis, porque um judeu não podia ser publicado
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* * *
Enigma do Poder

Depois de O Rei de Nova York, as emoções e o sangue que anteriormente esperávamos de um realizador de filmes de exploração retrocedem para uma simbologia sugestiva, ou deslocam-se inteiramente para fora da cena. Enigma do Podertem tão pouca "ação" de qualquer tipo, que a verdadeira trama torna-se algo a ser descoberto em repetidas visões do filme. Nós nunca vemos as cenas pelas quais estamos esperando, Sandii seduzindo Hiroshi, seu seqüestro, sua morte. Ferrara as eliminou. O que vemos são apenas os momentos humanos entre os eventos, o que acontece nas mentes das pessoas, e aqui também os momentos chave podem desaparecer, já que passam por um instante pelo rosto de alguém, e só posteriormente são turvamente compreendidos. Esse não é um filme apto a satisfazer qualquer um na primeira visão. Como acontece com Ferrara, parece haver muito menos coisa acontecendo do que realmente há, porque ele corta cenas expositivas e explicações e o diálogo é freqüentemente incoerente, e porque nós, enquanto tentamos procurar aquilo que não está lá, podemos perder aquilo que está. (Temos que criar um vazio para deixar a graça entrar.)

Ainda estamos nas planícies de Tróia, mas a guerra agora é apenas o set num estúdio; só existem três heróis, e sua geometria de força é internalizada. Enigma do Poder é um estudo de personagem, mas o aparente argumento é de tal forma um truque narrativo que talvez não possamos reconhecer qual é o personagem que é mais estudado.

Sinopse: Num futuro próximo, mega-corporações controlam o mundo, que vive tragado pela poluição. Hiroshi, um brilhante biólogo japonês, trabalha para a Maas e rejeita ofertas da Hosaka. Hosaka concorda em pagar a dois criminosos corporativos, Fox (Christopher Walken) e seu ajudante, X (Willem Dafoe), 100 milhões de dólares pela entrega de Hiroshi. Então eles contratam uma prostituta, Sandii (Asia Argento), para servir de isca para Hiroshi com "a única coisa que falta a ele: paixão". X começa a ensinar Sandii como "se apaixonar sem se apaixonar" para que ela consiga fisgar Hiroshi, mas ele mesmo acaba se apaixonando por ela, e ela, aparentemente, retribui. Sandii seduz Hiroshi, o seqüestro funciona, e depois sai pela culatra, quando a Maas solta um vírus que mata todos os biólogos de Hosaka. Sandii desaparece; Fox diz que ela se vendeu para a Maas. Hosaka culpa Fox e X. Fox se mata, e os agentes perseguem X de forma cada vez mais próxima. X passa os últimos vinte minutos do filme escondido num cubículo de aeroporto, o New Rose Hotel, relembrando cenas anteriores, masoquisticamente masturbatórias, e tentando descobrir se, por quê, ou quando Sandii entregou-se para a Maas.

Mesmo quando X reconhece os enganos de Sandii, ele não consegue parar de desejá-la. Isso está explícito na história original de William Gibson. E aparentemente esse foi o ponto que atraiu Ferrara quando ele leu o conto. ("Eu sabia que estava fodido. Porque era genial e eu sabia que tinha que fazer o filme.") No roteiro de Gibson e de Christ Zois, enquanto o helicóptero de Hosaka se aproxima, X delira: "Não posso te odiar, linda. Está tudo bem, linda. Vem aqui, por favor. Segura minha mão."
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Mas o que está explícito para Gibson e Zois transpira uma dolorosa ambivalência em Ferrara. Na versão de Ferrara, X lembra-se de ver no passaporte de Sandii o cartão de computador que disparou o vírus. Mas é tão certeiro assim que Sandii de bom grado os traiu? E não seria culpa de X, já que ela não disse, na mesma noite, que eles deveriam esquecer sobre Hiroshi, que eles deviam fugir, casar e ter filhos, e ele não a mandou de volta para Hiroshi ao invés disso? Para sua morte?

Então o filme termina com X repetindo duas vezes, a primeira em sua cabeça, e depois num flashback para Sandii, enquanto ele se deita na cama ao lado dela, "Se você realmente quiser, nós vamos fugir, ou seja, esquecer sobre Hiroshi". E ela sorri. Isso aconteceu de fato? Ou trata-se apenas da fantasia de X sobre o que ele deveria ter dito?

E, qualquer uma das duas opções, isso teria verdadeiramente feito diferença? Sandii está sorrindo diante das palavras de X porque eles vão se casar? Ou porque ele caiu no jogo dela? Seu sorriso é doce? Ou vil?

A câmera sugere que a cena aconteceu, porque o sorriso de Sandii acontece fora da visão de X. E quanto mais meditamos a partir da evidência, incluindo aquele sorriso, mais percebemos que X ainda não aceitou o horror completo de tudo aquilo que ele percebeu, as dimensões da traição da Sandii. No momento que ela propõe casamento, ela já tem o cartão do computador, ela já consentiu com o assassinato de X; na verdade, ela inclusive já concordou em cometer assassinato em massa. Ela começou a mentir ainda antes de se encontrar com Hiroshi. (Primeiro seu pai era italiano e trabalhava para Hosaka. Depois de Hiroshi, seu pai é francês.) Ela se passa por uma prostituta barata, escondendo uma segunda identidade como uma aluna de doutorado (como Kathleen) – outro sinal de perigo que X encontra em sua bolsa e ignora. Ela pede a X que se case com ela para provocá-lo, torturá-lo, porque ele ressente-se de ela ter "chupado o pau de Hiroshi" – depois de ele mesmo ter treinado ela para fazê-lo. Ela não está com raiva, e fica imediatamente maternal, pela razão que X deseja acreditar, no entanto. Ela lhe dará o beijo de despedida poucas horas depois, com ele meio dormindo e ela partindo para chupar o pau de Hiroshi. Não foi à toa que Ferrara começou essa cena de cama com um barulho alto de trovão.

Sandii busca sexo indiscriminadamente, de forma insaciável. Para Gibson e Zois, ela destrói a Hosaka porque a Hosaka matou seu pai. Para Ferrara, ela não tem nenhuma motivação discernível, jamais, exceto o prazer pessoal. Fox estava certo. "Ela é uma apostadora", dizia ele. "Ensine ela a se apaixonar sem se apaixonar você mesmo", disse ele. "É pra já", respondeu X, enquanto, se afastava para dar uns amassos em Sandii com Fox olhando. A idéia para Sandii de uma boa saída noturna, em seu caso de amor com X, é levá-lo a um sex club onde ela o ignora e entra na orgia, enquanto ele observa masoquisticamente em silhueta negra, convencido de que ele é o cavaleiro e que ela é seu brinquedo.

Claro, ele é dela. Ele pensa que está "ensinando" a ela, quando ele faz com que ela sussurre "Hiroshi!", enquanto transa com ela. Mas ela está "praticando" nele. "Eu choraria, morreria, voaria por você" (com viagens da língua para dentro de sua boca). Para X, "Hiroshi" torna-se a terceira pessoa essencial ao amor romântico, a que cresce em rejeição, em geometrias triangulares de força, e Sandii usa os ciúmes de X para manipulá-lo. Para ela, não há rejeições, então ela pode se apaixonar sem se apaixonar. X não. "Você tem que ficar com a cabeça fria para se safar dessa", Fox tinha lhe alertado. Mas X não estava com a cabeça fria, e agora todos estão mortos, assim como ele brevemente estará também.

Fox e X constantemente subestimam Sandii, e essa é a razão pela qual ela os mata. É o jogo. Eles acham que ela está bastante aquém deles, um objeto de compra; eles são tolos. Eles não percebem a forma macho com a qual ela acende o cigarro, deixando-o em sua boca, como um pau, tão logo ela percebe que há um jogo a ser jogado. Fox tem hybris demais: ele tagarela que sua profissão "não é por dinheiro. É por ação! Não é fazer uma coisinha e pronto", mas ele não consegue perceber que Sandii sente da mesma forma e não tem necessidade de tagarelar. "Ela é uma verdadeira puta", alguém diz a ele. Não é uma falsa! É um jogo para cada um, chefes do tráfico e governos. Os campos de Tróia. A força reina em todos os lugares; não há mais boas intenções como as que o rei de Nova York ou o "mau policial" tinham. Agora somos todos vampiros de almas, sugaram nossos corpos. O filme começa com todos em luz vermelha ou sombra negra: estamos no inferno. A luz vermelha, como a chuva de Homero, cai em todos da mesma forma: apetite, luxúria, poder. "Não é apropriado a um cavalheiro ficar introspectivo", Fox declara. "Nós somos os lobos. De estepe. Isolados. Solitários, Concentrados. Você é o lobo perfeito: olhos gélidos, lábios arreganhados, costelas salientes. Faminto!"
8 E é o que ele parece: um lobo, um vampiro, gélido, perverso, totalmente egoísta, cruel. Ele até grunhe. É um choque quando ele sorri. Sua felicidade é diferente da minha? O prazer tem moralidade?

Fox é feio, repugnante. Sandii é bela, aconchegante, interessante, uma vampira mais interessante (e perigosa) do que qualquer dos vampiros anteriores de Ferrara, um tratamento mais interessante (e realista) do mal do que qualquer dos outros ensaios morais de Ferrara, porque ela é atraente. Ela deleita-se com carícias, com sexo animal, e nos faz querer juntar-se ao prazer dela – que será o de nos destruir. Os lobos machos esquecem o jogo; ela é apenas uma menina, um brinquedo. Fox chega a apontar para ela como um carro novo: "Esse foi meu toque de gênio! Olha só! Lá vamos nós!"

É por meio das vitórias aparentes de Fox, X e Hiroshi sobre ela que Sandii faz deles peões. Essa é a geometria da força. Como Hallie no geométrico O Homem Que Matou o Facínora, de Ford (The Man Who Shot Liberty Valance, EUA, 1962), Sandii destrói três homens no curso de sua conquista. Ela é um lobo melhor do que Fox ou X, porque ela gosta de ser um lobo. Ela sente prazer em ser uma prostituta. Ela adora ser uma dominatrix. X acha que está "ensinando-a" a se apaixonar sem se apaixonar, ela, a mestre da interpretação, a festa a fantasia que nunca termina. Suas aparições são uma série de papéis típicos, como Marlene Dietrich em Vênus Loira (Blonde Venus, EUA, 1932), de Joseph Von Sternberg: cantora, prostituta, doce moça da casa ao lado, rainha pornográfica, covarde, ninfomaníaca, virgem inocente, exibicionista, cientista, mãe, sedutora. Ela sempre batalha rumo ao topo: afundando X na piscina, subindo a escada, fodendo na cama, jogando o Grande Jogo. Em retrospecto, tudo fica claro: foi tudo decidido nos primeiros minutos, quando Fox chamou-a de tapada. "Caso você não tenha percebido", grunhiu ele, "você está morta, você apenas ainda não teve a percepção de deitar [como faria um lobo]." Acontece num instante, quando ela levanta os olhos e olha para ele. Juramento de vingança.

É possível que não vejamos isso. Mas é impossível não ver seu ressentimento. Ferrara filma emoções, não explicações para aquilo que as pessoas eventualmente fazem. Seu roteirista, Christ Zois, cita um desses exemplos (em seu comentário de DVD), reclamando que Ferrara cortou uma cena fora do sex clubmostrando que Sandii leva X contra a vontade dele. Na verdade a cena é clara, mas apenas se prestamos atenção na linguagem corporal. E também é claro o que a cena diz sobre a natureza do relacionamento "amoroso" deles, mas só se nós pensamos sobre as emoções; ou então, como Fox, vamos preferir acreditar, ao final, em nossa própria auto-desconfiança. Nós vamos ouvir sua voz nos sonhos de X – "Muitos meses atrás eu era tão bonita e adorável quando você me viu pela primeira vez... e eu estava de preto." Vamos perceber o egoísmo, a dominatrix; mas nós não compreenderemos.

Nós vamos observá-la, uma menininha na cama, dizendo "Sim! Sim! Quando eu voltar!" (depois que X diz que eles vão discutir casamento quando ela voltar de Hiroshi), e nós vamos preferir ouvir uma aceitação alegre ao sarcasmo sádico. (Kathleen, emThe Addiction, usa o mesmo tom quando ela tranqüiliza uma vítima desejada, "Claro, vou passar aqui.") E nós veremos o vil sorriso de Sandii ao fim do filme (inequivocamente vil no roteiro de Zois), e vamos preferir imaginar que ela é doce. "Imaginação", dizia Simone Weil, "é sempre o tecido da vida social e o motor da história. A influência das necessidades reais e compulsões, de materiais reais e interesses, é indireta porque a multidão nunca está consciente disso".
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X saboreia os movimentos de Sandii, seu jeito e sua voz, até quando ele percebe seu cálculo letal. Opacidade é a tortura dela: nos deixa continuar nos enganando a nós mesmos. Será que ela está sempre jogando um jogo? Existe alguma autenticidade nela? Em alguém? X adere à dúvida para aderir a Sandii, para aderir ao amor, para aderir à humanidade, à lealdade, princípio, amizade, num mundo de arranha-céus disseminados, de um cinza sujo, podre de poluição, do qual nenhum deus ex machina chega para salvar desta vez, e a mais sangrenta vampira reina: Sandii. O masoquismo de X é a melhor esperança que Ferrara pode encontrar para redimir o mundo. O que dá uma certa glória a Sandii: uma glória na vitória, em satisfação sádica, como naIlíada quando Aquiles corta a garganta de uma dúzia de troianos na pira funerária de Pátroclo, ou a alegria de matar "Japas" nos filmes de Howard Hawks. Essa fêmea é claramente a escolha evolucionária para dominar neste mundo, em que o macho é uma figura ridícula, cujo desaparecimento é sua própria introversão (como em Raoul Walsh). Como Fox, Sandii rejeita a introspecção. Só a vitória. Existe heroísmo aí. Enigma do Poder insiste para que admiremos Sandii, assim como The Addiction insiste para que admiremos o vampirismo, My Lai, Hiroshima e Auschwitz. "Agora eu entendo como tudo isso foi possível!", exclama Kathleen.
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Tag Gallagher
(Tradução de Ruy Gardnier)
(texto na íntegra: http://www.contracampo.com.br/86/artgeometriadaforca.htm)

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