sábado, 28 de junho de 2014

The Whip and the Body, de Mario Bava


La Frusta e il Corpo, Itália/França,1963
Dellamorte Dellamore

O que persiste em Mario Bava, mais do que os outros cineastas discutidos nesta pauta, são certamente algumas imagens de predileção: uma figura sinistra aparecendo por detrás da janela (Boris Karloff em As Três Máscaras do Terror, Espartaco Santoni em Lisa and the Devil), suas adoradas donzelas tocando o piano durante a noite (Barbara Steele em A Maldição do Demônio, Daliah Lavi emThe Whip and the Body), a fixação por imagens duplas ou até mesmo pela questão da duplicidade (as bruxas Katia e Asa Wajda em A Maldição do Demônio, o médico que persegue a si próprio em dado momento de Mata Bebê Mata, todo o cast de Lisa and the Devil) e obviamente a beleza, a plasticidade inerente a todas elas. A impressão que se tem é que a partir destas cenas - e não o contrário - o cineasta organiza seus enredos, e que inclusive seus temas de predileção (em especial a ligação quase sempre inevitável entre paixão e morte) surgem da força de um específico imaginário visual traçado em seus filmes.
Se em A Maldição do Demônio o cineasta reúne uma série de modelos já existentes na cinematografia de gêneros (a elegância e o classicismo presentes nos filmes da inglesa Hammer; a criação exagerada de climas oníricos como em Jacques Tourneur e Jean Cocteau; a ambientação em estúdio dos filmes da década de 30 daUniversal), em As Três Máscaras do Terror percebe-se uma tentativa de agrupar no formato do filme em episódios (tão comum quanto particular ao cinema italiano nas décadas de 60 e 70) um padrão ou uma idealização do que poderia ser um terror única e essencialmente italiano. São sem dúvida dois belíssimos e especialmente importantes filmes na obra de seu diretor, porém de alguma maneira ambos parecem almejar um patamar de filme-sumário/filme-testamento que apenas Whip, desta primeira fase de Bava, de fato alcança como um todo.
Contratado pelos produtores para realizar um rápido veículo de horror estrelado pelo ícone Christopher Lee (o Conde Drácula dos filmes de Terence Fisher), Bava fez de Whip menos um exercício narrativo que um complexo e extremamente arrojado delírio visual em cima dos temas e das imagens mais marcantes de outros filmes. Já no início, quando o castigado universo familiar de A Maldição do Demônio e do episódio Il Wurdalak de As Três Máscaras do Terror se constrói diante de nossos olhos, sabemos estar em território unicamente Baviano. O crédito de abertura - letras amarelas por cima de uma cortina vermelha esparramada pela tela -, acompanhado pelo sensacional tema composto por Carlo Rustichelli, de certa forma prenuncia que algo de muito interessante está por vir. Porém, ao mesmo tempo em que satisfaz as expectativas visuais de quem já conhece o cinema de Bava, Whip choca com sua crueza. Pois se trata certamente do filme mais físico do cineasta, um dos poucos onde os atos de violência praticados pela figura opressora - aqui as chicotadas que Christopher Lee desfere em Daliah Lavi - adquirem um impacto emocional mais direto junto ao espectador, em grande parte por Bava despir tais cenas dos artifícios conferidos em outros filmes a seqüências deste gênero. Não vemos aqui a artificialização da cenografia como em Blood and Black Lace, Perigo: Diabolik ouBanho de Sangue - que por conta de suas impressionantes dimensões ajudam a tornar fácil um distanciamento das ações que nelas ocorrem - nem os jogos de luzes, nevoeiros e sombras presentes em Mata Bebê Mata e O Planeta dos Vampiros: tudo o que Bava tem à sua disposição são um chicote, seus dois atores e uma praia. O que é retirado de recursos tão miseráveis são alguns dos momentos mais intensamente belos de sua obra: o cenário poético envolve perfeitamente as cenas de sadomasoquismo protagonizadas por Kurt (Christopher Lee) e Novenka Menliff (Daliah Lavi), cada chicotada repercutida na aspereza da ambientação ou nas bizarras expressões dos personagens.
Se por um lado é Il Wurdalak que Bava parece mais ter em mente, especialmente nas cenas em que um já falecido Kurt retorna do além-túmulo para convencer sua amada Novenka de que a junção na morte conservará para sempre a paixão de ambos, são certamente as imagens marcantes de A Maldição do Demônio que o cineasta quer recriar aqui: uma mão que parece abandonar os limites da tela e querer nos agarrar; uma cena de beijo onde um Christopher Lee iluminado por verdes e azuis saturados engole a câmera; as cavalgadas pela praia que dão início ao filme, onde acompanhamos o percurso que Kurt Menliff toma para retornar à família da qual foi expulso; e as melancólicas passagens na mesma praia onde Novenka se põe a fitar o mar quando percebe que não tem como controlar seu desejo por Kurt. São cenas que não apenas marcam profundamente nossas percepções mas que também reforçam nossa relação com o assunto que Bava explora neste filme: o amor que para existir precisa matar, não por ser doentio mas por ser levado às últimas conseqüências, por ser voraz e por precisar ser saciado com a chama, com o ardor das paixões. Sabemos que a filha da governanta Giorgia se matou por adoração a Kurt, e veremos que o percurso traçado pelas vítimas neste filme não é tão diferente: por mais que Kurt tente estabelecer um desprezo por Novenka existe uma ligação impetuosa entre os dois que necessariamente irá levá-los - e ao pai de Kurt - às fatalidades que acabam com suas vidas. Os outros personagens apenas observam passivos, raivosos ou simplesmente incapazes deste amor (como nos casos de Christian, irmão de Kurt, e sua prima Katia, separados pelo forçado casamento de Christian com Novenka). Neste mundo de belas imagens que Bava nos oferece também são belas as emoções e as sensações proporcionadas: o tempo inteiro se ama um pouco, se sofre um pouco e se morre muito. "Do amor à morte", nos lembra Bava, antecedendo o Michele Soavi de Pelo Amor e Pela Morte como também o David Lynch do maravilhoso Mulholland Drive. Apenas um mestre consegue tornar noções tão distintas em uma única idéia, uma única imagem: o fogo que queima os restos mortais de Kurt na última cena do filme, unindo-o a Novenka por uma última vez enquanto seu chicote se desfaz em chamas.

Bruno Andrade
(texto original:
 http://www.contracampo.com.br/41/whipandthebody.htm)

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