quinta-feira, 4 de setembro de 2014

MAN HUNT / 1941

(Feras Humanas/O homem que quis matar Hitler)


Um filme de Fritz Lang


Primeira obra de temática anti-nazi da obra de Lang, Man Hunt é o filme dos espaços cerrados e dos sons abafados, lugar da música de Newman, dos muito lentos avanços da câmara (ou para a câmara) da seta “in the wrong heart” (ou “in the right?”), de Joan Bennett “straight and shining” na primeira das suas quatro aparições no mundo de Lang. É o filme que faz tanta pena, o filme das muitas saudades. É Fritz Lang a dizer (falando de Joan-Jenny): “I must admit she had all my heart” (...) “This love affair - in those days you could still say love without being laughed at - the tenderness of it”.

Lang deu-nos algumas vezes mulheres assim: Lil Dagover (Der Müde Tod), Madeleine Ozeray (Liliom), Sylvia Sidney (You Only Live Once), Lilli Palmer (Cloak and Dagger), Gloria Grahame (The Big Heat); mas nenhuma teve “so much on her” como este incrível personagem que o Código Hays e Zanuck estiveram quase a censurar (a máquina de costura, em evidência, no quarto de Jenny, foi lá posta - contou Lang - para disfarçar a sua profissão, a tal que se diz ser a mais antiga do mundo). E a inenarrável sequência da ponte de Londres, talvez a mais bela cena de amor da história do cinema (entenda-se a mais bela em sentido godardiano) esteve quase para não existir porque Zanuck a achava ridícula (“Quando uma pega faz de pega diante do homem que ama - não pode ser trágica. Só quando uma rapariga séria – ‘a decent girl’ - faz de pega, é que pode haver tragédia”. Terá havido alguma vez uma “decent girl” como Jenny?

Fritz Lang, na entrevista a Bogdanovich, fala dela durante páginas. Apetecia-me segui-lo. Falar, por exemplo, da sequência da primeira noite de Jenny e Thorndike e - cito Lang - “da rapariga que chora como uma criança porque o homem que tanto quer (‘she wants so very much’) não vai para a cama com ela. Há tanta coisa nisso: vergonha ‘talvez não esteja à altura dele’- desejo ‘porque é que o não posso satisfazer?’”. Falar dos sorrisos que se seguem a essas lágrimas. Falar do fabuloso plano, que precede essa noite, quando Walter Pidgeon está à janela. Falar da sequência da compra da seta. Falar da elipse que se segue ao genial contracampo, quando Jenny chega a casa e descobre “a espera” (“recusou-se a dizer-nos o que quer que fosse”). “The death of a girl like that can be no loss at all”. A girl like that…

Mas não tenho páginas e páginas e há outras coisas quase tão importantes como Bennett neste filme fundamental.
Vou pôr ordem nisto. Para começar, recordarei que o primeiro filme anti-nazi de Lang não foi uma escolha deste. O magnífico argumento de Dudley Nichols (baseado no romance de Geoffrey Household, Rogue Male, o que literalmente quer dizer “O Safado”) já estava nas gavetas da Fox, quando Lang foi escolhido para o filmar, substituindo John Ford em quem Zanuck inicialmente pensara. Só que um argumento (Nichols o disse) é um borrão e o que Lang fez dele é que é Man Hunt.

Continuo, discutindo a caracterização “filme anti-nazi”. Se o contexto é inegável, já me parece discutível que o cerne do filme seja esse.

Vamos ao princípio: numa fabulosa floresta (que podia vir dos anos 20 alemães) a câmara avança em travellings muito lentos até descobrir uma pegada, e depois outra (grandes planos). Só depois vemos (em plano americano) o dono desses pés: Walter Pidgeon. Tudo o caracteriza como um caçador (espingarda, chapéu tirolês). Não há música e há um vago vento. Depois vemo-lo deitar-se no chão e preparar a arma (grande plano do regulador, intercaladamente repetido). Até que vemos o que ele vê. No ponto de mira da objectiva telescópica, Adolf Hitler. Pidgeon visa bem, tem Hitler bem no centro dos seus e nossos olhos e prime devagar o gatilho. Mas não há bala. Só depois a mete no carregador e volta a apontar. É tarde de mais. Os homens das S.S. já lhe caíram em cima.

Porque é que Pidgeon não meteu logo a bala no carregador e perdeu tanto tempo? A Quives-Smith dirá (no interrogatório inicial) que não vinha para matar Hitler, e que nesse momento o que quis foi saborear o prazer da caça, o prazer de ter a presa (e que presa!) à sua mercê. Quives-Smith, também caçador (o tema do “most dangerous game” domina este filme) percebe-o mas duvida. O espectador também. E contudo é misterioso porque é que Thorndike não disparou. Por “necessidade do argumento” (o filme acabaria ali)? Por “verosimilhança histórica” (em 41, o Führer estava bem vivo)? Não são explicações plausíveis, porque era sempre possível movimentar Hitler inesperadamente, de modo a que o atentado falhasse.

Quando Bogdanovich lhe fez essa pergunta, Lang classificou-a de “muito inteligente” e observa que se tinha esquecido disso (“Talvez seja um lapso freudiano - não sei” (...) “Quando revi o filme tive a mesma sensação, mas não posso - em verdade - dizer-lhe que o facto dele não disparar foi qualquer coisa subconsciente em mim”. Não vou ser mais papista que o papa: mas esse lapso inicial de Thorndike, é o prenúncio do comportamento em lapso do personagem, ao longo de quase todo o filme. Nunca sabemos se Pidgeon actua deliberadamente, ou se o seu comportamento é fruto de circunstâncias. Se é um caçador, se é um resistente. O que é sintomático é que na última caçada (em que se transforma de presa em caçador), a do arco e flecha, dentro do buraco, Thorndike repita a Quives-Smith a versão inicial, para dizer a seguir, que agora e só agora (quando sabe da morte de Jenny) o “jogo” se vai transformar em luta de morte. Onde eventuais razões colectivas não funcionaram, funciona uma razão pessoal: Thorndike vai vingar a morte de Jenny. Essa é a diferença entre o início e o fim do filme. No princípio Thorndike é, pelo menos, indeterminado. No fim, sabe precisamente o que quer. E no avião vemos pela última vez a seta, que começara por ser enfeite de Jenny, passou depois a signo substituitivo dela, (é Pidgeon quem as identifica no “straight and shinning”), volve-se em sinal de morte e, por fim, em instrumento de vingança, em arma cravada no “right heart” (Quive-Smith). A seta é a imagem que atravessa o filme, mais do que fetiche, símbolo, ou qualquer outra explicação pacificadora.

Ao longo da obra (mas não se chama ela Man Hunt?) o tema da caçada prevalece. É um filme de sucessivas emboscadas e de sucessivos ardis (o “acidente” na Alemanha, o metropolitano de Londres - fabulosa sequência com o portentoso Carradine - o covil final).

Em Man Hunt perfila-se sempre uma estrutura lúdica (o ludus, associado à morte como forma suprema de prazer), dominado, quase desde o início, pelo contraste de claros e escuros (xadrez) que acompanha o primeiro encontro entre os dois caçadores.
Permanentemente a descoberto e permanentemente cobertos (da floresta, ao barco e ao esconderijo, da casa de Bennett ao metropolitano, do covil à fresta exterior) os protagonistas da caçada (ou os seus sequazes) vão descendo aos seus próprios abismos, numa progressão magistral: da floresta sombria e do gabinete de Sanders passa-se para a “queda” cada vez mais subterrânea: alçapão do barco, metro, para tudo acabar num buraco, com cerco completo feito em torno de Pidgeon. O que o salva é um imponderável chamado mulher. A “intromissão” feminina na caça de homens dita-lhe o desfecho, introduzindo a dimensão que, viril e impotentemente, se haviam recusado a admitir em toda a sua verdadeira grandeza. 

E o jogo-caça dos personagens é “emoldurado” como em tantos outros filmes de Lang, por o absurdo dum “jogo social” (a sequência da casa do diplomata) que impõe os códigos que só Joan Bennett - sempre ela - desarruma e desarticula, perante a complacente incompreensão de Pidgeon, demasiado metido neles para lhes descortinar o alcance. Entre Thorndike e Jerry, interpõe-se não só o jogo mas a ordem (outra forma de afirmar o mesmo) como é visível na sequência da ponte em que a intervenção do polícia (entre o nevoeiro e o candeeiro) não quer dizer outra coisa.

Como entre Thorndike e Quives-Smith (personagens de certo modo contrapolares, duplos um do outro, pelo seu estatuto social e pelo seu estatuto lúdico) se interpõe a necessidade de quebrar a regra do jogo. “Desde que atravessou a fronteira, tornou-se um assassino inconsciente”, diz Quives-Smith a Thorndike no início. Efectivamente, Thorndike só atravessa a fronteira, quando sabe da morte de Jenny. E só nessa altura é um assassino consciente. “A girl like that” diz Sanders; “your little Caesar”, diz Pidgeon. Ambos menosprezam o valor das presas. Só no fim, a caça passa a chamar-se guerra. E a dimensão colectiva - donde o fundo documental das sequências finais - sobrepõe-se - definitivamente - à dimensão individual que até às suas “morte” e “ressurreição” sempre fora a de Pidgeon.

Mas para passar de uma a outra teve que realizar a inversão dos seus códigos morais (em função de Bennett) e a inversão dos seus códigos de combate (a assunção da primitividade no fundo do buraco). Teve, ele também, que dar razão a Sanders: “O homem é o mais perigoso dos animais”. Sobretudo quando está ferido.

JOÃO BÉNARD DA COSTA
(Folhas da Cinemateca Portuguesa)

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Texto originalmente escrito antes da entrada em vigor do novo Acordo Ortográfico

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