segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Straw Dogs (1971) de Sam Peckinpah


O culto, que tem crescido a olhos vistos desde há uns anos para cá, em torno deste filme de Sam Peckinpah nem sempre tem contribuído para nos elucidar sobre o seu lugar específico no contexto geral da obra do realizador de Wild Bunch (A Quadrilha Selvagem, 1969). A maior tentação será criticar esse fenómeno cultalgo redutor, como na maioria todos são, mas, neste caso particular, ele será mais a manifestação de um sintoma do que a causa do problema que Straw Dogs (Cães de Palha, 1971) nos coloca, desde logo, na leitura da sua sinopse.
No papel e de facto, “isto não é” um western ou um filme de guerra, a acção desenrola-se na actualidade e localiza-se numa aldeia inglesa e o protagonista é um matemático norte-americano que vê na ideia de ir viver para a terra de origem da sua jovem mulher uma boa oportunidade para, longe da cidade e usufruindo da serenidade e ar puro do campo, se adiantar na escrita de um livro. Em suma, “isto é” tudo aquilo que, provavelmente, o espectador atento não estaria à espera de encontrar num filme de Peckinpah. Todavia, este filme não só tem a assinatura personalizada do seu cinema como o leva mais longe nos seus pressupostos.
Tanto Major Dundee (1965), como o clássico (ferozmente anti-clássico!) Wild Bunch e depois The Ballad of Cable Hogue (Balada do Deserto, 1970) tinham no centro homens de barba rija que não viravam a cara a uma batalha e que, sem pudor, buscavam prazer na bebida ao mesmo tempo que se serviam em abundância de prostitutas que tratavam como animais… Todos estes títulos celebravam de um modo ambíguo a masculinidade na sua feição mais desbragada. Ora, Straw Dogs versa sobre a masculinidade não como “dado adquirido” mas como “provação”. O seu protagonista, interpretado por Dustin Hoffman (não tenham dúvidas de que este é um dos castings mais certeiros na história do cinema moderno), pode ser descrito como uma autêntica avis rara, mais concretamente, um bom totó dos números que parece estar mais interessado no quadro negro onde escreve uns arabescos matemáticos do que na sua voluptuosa companheira, “mulher fatal” com corpo e cabeça de adolescente (ambos muito bem trabalhados pela actriz inglesa Susan George).
A personagem de Hoffman é bem cedo posta em cheque por esse facto: como é que um “caixa d’óculos” daqueles tem uma mulher daquelas, cheia de looks e com tão poucos brains? A interrogação será colocada, desde logo, pelos locais. E será colocada compreensível e legitimamente, o que introduz o primeiro elemento de desconforto neste filme: por muito que não nos reconheçamos, e desprezemos eventualmente, o grupo de gente rude, bêbada e selvagem que ali habita (típica local people, como reza a célebre sitcom inglesa The League of Gentlemen), a verdade é que acabamos por partilhar com ele, desde os primeiros instantes, o tal sentimento de “estranheza” face à imagem daquele casal. Esta cumplicidade inicial vai ser motivo de múltiplas manipulações e jogos (como o xadrez que entretém o casal no filme…) por parte de Peckinpah, pelo que ao protagonista se vão montando as mais matreiras armadilhas para se saber, enfim, até onde vai a sua não tão evidente quanto isso manhood.
Com efeito, o que se passa em Straw Dogs é que o herói parece passar por uma longa via sacra de provações à sua masculinidade para se aferir em que medida este é ou não é digno de entrar num (se for um verdadeiro…) Peckinpah movie, relativizando-se, para complicar a vida ao espectador, os elementos da culpa e da inocência dos vários intervenientes, sejam eles locais ou forasteiros. É que se é compreensível e legítima a estranheza face ao estranho, também é compreensível e legítima a atracção dos homens da aldeia por aquela mulher esbelta e insinuante e também será compreensível e legítima a sua algo prazerosa cedência, muito controversa na época em que o filme saiu, à violação por dois conterrâneos, já que o seu marido parece amar mais um quadro negro cheio de fórmulas ilegíveis do que ela. Mais: também é compreensível a acção desmiolada do pai bêbado e os seus filhos/capangas em quererem acertar contas com o pedófilo que roubou a vida à filha pequena daquele. E essa acção é tão compreensível quanto a reacção da personagem de Dustin Hoffman, ao fazer tudo para impedir a entrada de qualquer um deles na sua casa, na qual dá guarida ao pederasta que atropelou por acidente.
O que nos desafia na narrativa de Straw Dogs é que a tal “estranheza face ao estranho” (perfeitamente natural) degenera num jogo de poderes perverso em que todas as personagens são culpadas e inocentes, indistintamente, quase ao mesmo tempo. O que muda na narrativa de Straw Dogs é que Hoffman que era um bananas no início vira um Peckinpah hero no fim; é que Hoffman que era o forasteiro no começo, quando recusa a entrada em sua casa, torna forasteiros “os locais” que no começo, compreensível e legitimamente, “estranharam” a sua vinda. No centro de tudo está, assim, uma perspectiva cultural, muito cara ao western fronteiriço peckinpahniano, sobre o conceito algo instável de soberania, representado, denotativamente, pelos limites da casa e, conotativamente, pela implosão (lenta?) da virilidade reprimida do nosso herói. A primeira, a casa, é invadida no fim (apesar da cena do gato constituir uma primeira, e muito decisiva, intrusão), ao passo que a segunda, a sua masculinidade, vai sendo minada de dúvidas (inclusivamente pela sua mulher) ao longo do filme.
Peckinpah é ardiloso a construir esta tensão física versus psicológica na vida do protagonista e, para mal dos nossos pecados, a sua resolução moral acaba reenviada ao espectador sob a forma de uma espécie de equação impossível (ou sabotada…), próxima daquelas que “enfeitiçam” o protagonista no quadro do seu trabalho enfadonho: local/forasteiro = homem/não-homem. Não sabe do que raio estou a falar? Pois então faça o favor de se submeter ao teste, assim que lhe for possível.

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(Teto original: http://apaladewalsh.com/2012/07/29/straw-dogs-1971-de-sam-peckinpah-2/)

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