domingo, 9 de novembro de 2014

Hitchcock Libertário Simbólico (fragmento)


por Ruy Gardnier

INTRODUÇÃO. Hitchcock só no parágrafo seguinte.
A crítica no Brasil é devedora do trabalho dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos. No caso de 50% da presente revista, idem. No caso desse que escreve, também. Foram eles os que mais fizeram pela divulgação e pelo questionamento dos processos artísticos da literatura nesse século (e no que esse século considera como seus antepassados, dos provençais a Poe). No plano da crítica, trouxeram os formalistas, Ezra Pound e os estruturalistas. De modo que grande parte das vanguardas brasileiras se apóia, quando escreve, na herança Pound / Fenollosa / Barthes. O mote da crítica concretista, que veio num momento cheio de raiva contra toda uma geração crítica acadêmica e conteudista, dizia: "A forma é o conteúdo", ou à maneira de Marshall McLuhan, "O meio é a mensagem". É claro, o que se tratava naquele momento era tirar de circulação os grandes temas, a fábula moralizante, para, no século da linguagem, fazer a análise poética da linguagem. Resta, porém, um resíduo que não é criação do concretismo mas que lhe veio com o tempo (e é de se acreditar que com o tempo os pós-concretos tenham cristalizadas e plácidas as suas questões outrora vivas). Esse resíduo é a crítica veemente a qualquer coisa que possa parecer à primeira vista uma análise do conteúdo, do assunto da obra. Ora, justo onde parece que estamos falando de conteúdo, vai aí que falamos apenas de formas — pois nos parece evidente que o assunto, o desenrolar de um filme ou de uma peça, vai desenhando, a seu modo, uma gama de formas que um desviar de olhos fatalmente deixaria escapar parte importante da obra em questão. Se você me disser que arte é forma, eu concordarei. Se você me disser que arte não é conteúdo, você se enganou muitíssimo. Numa obra vemos formas — mas formas de expressão e formas de conteúdo. Estilo e assunto, se se quer. Uma análise conjunta dos dois é sempre mais abrangente do que isolar um ou outro numa análise formal (e o estruturalismo esgotou as suas possibilidades há algum tempo, embora ainda tenha heranças bem-vindas). Por isso essa guisa de introdução a um texto de análise das formas do conteúdo.

***

Hitchcock é um artista um pouco avesso a uma interpretação de sentido nos seus filmes. Os estudos sobre seus filmes tendem sempre a tentar penetrar em seu (denso) estilo. Seu cinema já chegou inclusive a ser pensado como pura forma e nenhum conteúdo, a expressão máxima da arte visual no cinema. Contudo, as formas de conteúdo são recorrentes, vários filmes são organizados de acordo com o mesmo parti-pris. E, antes disso, sob uma mesma forma de conteúdo geral: o suspense. O suspense é uma forma. Ele trabalha tanto na forma de expressão quanto na forma de conteúdo. Como expressão, ele trabalha com o que está ausente na tela, em suspensão. Como conteúdo, ele opera os complexos semânticos de medo e de passagem de tempo.
O suspense pode ser desenhado a partir de diversas formas, e o próprio cinema de Hitchcock pode ser considerado como um grande inventário, ou antes como um grande evangelho das formas do suspense. Mas a visão contínua de sua obra permite que se veja que o velho Alfred tem uma predileção imensa por uma delas: a do percurso. O percurso começa com um fator desencadeador, a partir do qual o personagem terá que provar algo, enfrentando com isso a franca oposição dos poderes instituídos (polícia, política, cidadãos "idôneos", etc.). É esse percurso que na maioria das vezes constitui o suspense, por exemplo, em Sabotador, Os 39 Degraus, Correspondente Estrangeiro, A Dama Oculta, até filmes tardios, como Cortina Rasgada.
Mas esse percurso envolve outra coisa — o objetivo. Óbvio, a estrutura narrativa tenta resolver isso de forma simples, através da simples realização do percurso e da inocência por fim encontrada. Mas as linhars subliminares de Hitchcock, ou ao menos de suas principais obras, nos dizem mais. Através do caminho percurso-prova-inocência, se desenha uma outra linha discursiva, um outro fluxo de enunciação que não tematizam mais justiça ou inocência, mas sim os valores de casamento, maturidade e desejo. Quanto a isso, dois filmes colocam isso especialmente em evidência: Janela Indiscreta e Intriga Internacional. Os signos de sexo e casamento são tão patentes nesse filme que é impossível pensá-los como acesssórios à trama. Ao contrário, é a trama que parece colocar-se em segundo plano e servir apenas de metáfora para o que o verdadeiro filme está mostrando.
Em Janela Indiscreta, filme-tese sobre o casamento, vemos L.B. Jeffries com a perna quebrada. Em dois travelings se desenvolve a dialética do filme: um mostra, numa virtuosidade surpreendente, tudo o que envolveu o acidente do personagem, como a câmara de fotografia, as fotos de carros de corrida, até mostrar o gesso e Jeffries dormindo numa cadeira de rodas; no outro traveling, observamos o que Jeff pode ver através da sua janela traseira, como o casal feliz que compartilha todos os seus momentos, a jovem bailarina que freqüenta o bas-fond e vive num mundo vazio à procura de um amor, o pianista que não consegue completar a sua obra por falta de inspiração, a senhora que tem crises nervosas por viver sozinha e um casal que briga infernalmente. O elemento que vai operar essa dialética, que vai conjugar Jeff com a questão do outro prédio (a questão da vida amorosa) é Lisa Fremont, jovem da alta classe que tenta desposar o desajeitado fotógrafo1. Jeff não parece descontente de viver sozinha: namora a jovem, que é rica, bonita e inteligente, e trabalhando em viagem pelo mundo, acompanhando as corridas de carros. O que impede o desejo de Lisa de se realizar é justamente o fato de Jeff encarar a vida no casamento como tediosa e sem-graça. A operação de Janela Indiscreta é a passagem ao ato. Se temos razão, Jeff observa a questão do casamento através da janela traseira de seu prédio, mas jamais chega a tomá-la para si. Vendo, ele pode viver esse momento sem entretanto correr o risco de sofrer as decepções causadas pelos relacionamentos. Mais uma vez, a questão do medo de sociabilidade em Hitchcock, a vida social sendo sempre o terreno do mal e da sordidez.
Janela Indiscreta tematiza um procedimento caro à obra de Hitchcock (mas nem tanto à sua vida): a passagem ao ato, ir do ver até o ser. Lisa é o operador simbólico da passagem ao ato de Jeff, algo como um "operador de maturidade": ele começa o filme como uma criança, a empregada/enfermeira servindo como uma figura de mãe (as figuras de mãe são recorrentes nos filmes de Hitchcock), e termina o filme casado, feliz com Lisa Fremont. Lisa é operador porque é ela quem consegue fazer ver que o casamento não é (como o menino Jeff pensava) a submissão a um modo sedentário do relacionamento amoroso. A incursão de Lisa pelo prédio em frente é exemplar do universo de desejo hitchcockiano: ela penetra no mundo do casamento, ela penetra no universo do outro, da sexualidade. É só a partir daí que Jeff percebe que pode se entregar ao casamento; o casamento, depois disso, passa a ser uma verdadeira economia política do desejo, nunca mais uma partilha sedentária dos afetos. E só a partir daí o filme pode se completar.

(...)

1.Na verdade, a metáfora é impressionantemente mantida até o final do filme, pois na hora de exercer alguma ação sobre o que acontece no prédio em frente, quem vai fazê-lo é Lisa, e só isso, o espírito aventuresco de Lisa, é que vai fazer com que Jeff finalmente queira se casar com a moça.

Texto na íntegra: http://www.contracampo.com.br/01-10/hitchcocklibertariosimbolico.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário