quinta-feira, 26 de março de 2015

Carta a Jean-Pierre e a Jean-Luc


Saudações a ambos do ano de 2004, 32 anos após sua carta à “atriz” e “militante” conhecida como Jane Fonda. Vamos falar sobre sua meditação de 52 minutos – infame, “anormal” (segundo John Simon, que exclamou este epíteto quando saiu feito um furacão da coletiva de imprensa do New York Film Festival) – sobre a célebre foto de “Hanoi Jane” dando ajuda e conforto ao inimigo.

Êxtase

“Há um ponto em que, num certo estado mental, o espírito recupera a esmagadora sensação da matéria,” disse Jean-Pierre Gorin numa entrevista à revista Jump Cut, em 1974. “Então você chega num ponto em que não existe certo ou errado, desespero ou alegria. Você está além destas contradições e tudo é uma experiência completa e totalizante.” Nos anos imediatamente seguintes a Carta para Jane, quando as pessoas já não mais falavam no filme – o que foi raro – o êxtase do materialismo era a última coisa que passava pelas suas cabeças. Os filmes do Grupo Dziga Vertov, em geral, e Carta para Jane, em particular (filmado, gravado, e mixado em tempo recorde) eram mencionados como o máximo em “não-cinema”, “des-prazer”, um pouco demais até para o mais rigoroso esteta do centro de Nova York. Se por um lado os filmes eram muito “políticos” para a vanguarda, por outro estavam muito distantes da política nua e crua – muito “cinemáticos” – para os engajados politicamente.
“Nós fizemos este filme da mesma maneira que se faz um abridor de latas.”
Gorin devia estar falando de algum outro filme do Grupo Vertov, mas poderia estar descrevendo este aqui também. Um filme feito sem grandes ambições, como uma ferramenta audiovisual, um aditivo cultural, como aqueles compostos químicos que removem várias camadas de tinta para chegar à madeira original que está por baixo. Mas, 30 anos depois, é o êxtase da empreitada que parece mais surpreendente. Gorin muitas vezes recorre à teorização “rizomática” de Gilles Deleuze, com sua falta de conclusão máxima, sua substituição de um “portanto” reprimido por um “e… e… e…” eufórico. Enquanto Carta para Jane parece se destilar em um ponto final conclusivo – que qualquer atividade para os ocidentais que pensavam sobre o Vietnã em 1972 que não fosse ouvir os vietnamitas e entender o tipo de paz que eles queriam era nada mais que um disfarce, o filme acaba sendo qualquer coisa menos uma apresentação com um desenrolar lógico. Em vez de cavar cada vez mais fundo, ficam apenas acumulando insights (o olhar no rosto de Jane Fonda ecoando o olhar compassivo usado por seu pai em As vinhas da ira), resolvendo quebra-cabeças (por que a atriz “em foco” é ideologicamente indistinta, enquanto o vietnamita “fora de foco” é, como a direita americana, ideologicamente definido), e desatando nós capitalistas (uma fotografia pode esconder mais do que revelar, dependendo de como é publicada e posicionada). “Você não vai entender Marx se não perceber que este cara descrevendo a máquina capitalista estava num estado contínuo de masturbação mental”, disse Gorin na entrevista da Jump Cut. “Ele adorava colocar todos os elementos juntos, e é muito importante amar o que você está fazendo.” Trinta e dois anos depois do fato, você não sai deste filme sentindo que viu uma inquisição acadêmica seca, mas um engajamento estático com o presente. Deve ser dito que o prazer é quase todo seu, mas que nós ganhamos nosso quinhão também.

Dois estrangeiros

Quando escuto a trilha sonora de Carta para Jane – e esse é um filme que você tem de escutar, acima de qualquer outra coisa – estou ciente de que estou ouvindo dois papéis sendo encenados, interpretados diante do microfone para uma ocasião especial: um filme feito para “explicar” um outro filme (Tudo vai bem) para platéias americanas. Quais papéis vocês dois estão interpretando? Dois intelectuais “marxistas” se queixando? Dois europeus enxergando a verdade sobre uma americana? Dois homens num lengalenga sobre uma mulher? Todas as coisas acima. Pode-se dizer também: dois juízes num previsível tribunal stalinista (conforme apontou James Monaco em The New Wave); dois detetives num confronto verbal com o criminoso antes de chamar a polícia; dois espiões comunistas enviados do quartel-general para exortar seus camaradas mais conhecidos, direto das páginas do subvalorizado romance de Chester Hime, Lonely Crusade. E a idéia de como uma platéia americana deve ser abordada, o tipo de conversa “na lata” ao qual eles possam responder, agora parece um mecanismo extremamente antiquado dos Estados Unidos da era Nixon. Por exemplo, o olhar de compaixão lançado pela atriz enquanto ela supostamente ouve os camponeses vietnamitas foi “tomado emprestado, o principal e os juros, do New Deal”. Como se vocês fossem dois vendedores de seguros que pararam para tomar um trago no boteco da esquina depois de um dia duro de trabalho estudando as tabelas atuárias mais recentes.

Uma mulher é uma mulher é uma mulher

“Por que uma carta para Jane?” Eu pensava enquanto assistia ao filme outra vez.
“Por que não uma carta para Yves?” Aí, é claro, o filme – ou vocês – me deram a resposta: porque Yves Montand não foi fotografado quando foi ao Chile. Pelo menos não de forma simbólica. E vocês até abordam a questão de por que dois caras estão, mais uma vez, repreendendo uma mulher. Em 1972, todos os caminhos levavam ao Vietnã e a formas de promover a causa do povo vietnamita. Mais do que qualquer um, foi Fonda quem deu motivos, seu senso de estratégia e o derradeiro impacto de seu gesto ficaram abertos ao tipo de inquérito instaurado aqui por vocês. Muito justo.
Mas a pergunta ficava me incomodando do mesmo jeito. Por que não simplesmente fazer uma interrogação sobre esta fotografia, sem a abordagem direta? O nível de minúcia na análise da foto, tirada por Gerard Guillaume e publicada no L’Express, parece ser totalmente imaterial para um diálogo genuíno com a mulher que aparece nela. Trinta e dois anos mais tarde, parece que Jane – “Hanoi Jane”, a santa padroeira do esquerdismo militante americano; Jane, a antiga estrela que quase desistiu do filme de vocês; Jane, na “função de Jane”, a incorporação do esquerdismo de celebridades – foi o que botou o motor de vocês pra funcionar. Ou talvez o ato de dois caras se juntando para dar uns apertos numa moça tenha sido apenas isso, mais uma encenação. Eu acho que entendo: a direita americana é “nítida” e a esquerda americana é “imprecisa”, o que significa que a direita é “masculina” e decidida, enquanto a esquerda é “feminina” e inconstante. Um toque de mestre, então, captar no rosto sensível e terno da “mulher” que está no coração do esquerdismo toda emoção, e nada de pensamento. Depois de feitos todos os cálculos conceituais, parece ser uma ótima idéia.
 Então, à segunda vista, continua sendo dois caras se juntando para dar uns apertos numa moça.

Plus ça change

Então, 32 anos depois, os EUA estão, mais uma vez, em guerra por motivos duvidosos. Mais uma vez o país está polarizado. Mais uma vez, talvez com mais força do que em 1972, a direita americana está em ascensão. Um de vocês é agora residente nos Estados Unidos há muito tempo. O outro está entocado na Suíça. Ambos continuam sendo grandes cineastas.
O filme “abridor de latas” de vocês agora foi fixado no tempo. Ganhou o status de “curiosidade” – uma obra que é um “produto de sua era” antes de ser qualquer outra coisa. Pronto para ser encaixotado e enfiado no fundo do armário histórico.
Nós temos infinitas maneiras de nos isolar dentro do nosso próprio presente, passando tantas demãos de verniz que nem conseguimos tocar sua verdadeira superfície. Como falou uma vez o velho amigo e colega de Gorin, Raymond Durgnat, o fato de algo ficar “antiquado” não o torna mais interessante? Por que devemos rejeitar o que está preso no tempo?
Assistindo a seu filme outra vez, depois de tantos anos, agora que os estudantes inquietos que o assistiram em 1972 já estão grisalhos, agora que McNamara já foi imortalizado por Errol Morris, agora que Jane já passou de pacifista militante para esposa de político liberal para melhor atriz de Hollwood para Rainha da Malhação para esposa de aristocrata bilionário para “superestrela” distante de anos passados, depois que o senhor Gorbachev derrubou aquele muro, depois que Reagan inaugurou o processo que transformou este país no que parece ser uma fantasia permanente de si mesmo, agora que praticamente todos os mercados imagináveis já estão livres, eu acho que o filme fala de forma ainda mais poderosa através da natureza do seu passado e de sua idade do que quando ele tinha acabado de sair do laboratório.
O que há de tão especial no seu pequeno adendo a um filme? Será que é o fato de ele ser tão “barato”, tão um produto da fome, numa época em que toda a ênfase e toda a energia do cinema estão sendo dispendidas na criação de uma superfície apresentável? Será que é o tom deliciosamente impenitente de dois tribunos marxistas assumindo a responsabilidade de instruir uma platéia, sem humildade ou autojustificação? Será que é o fato de vocês terem percebido a urgência em analisar imagens e a maneira como são disseminadas (levando a análise elegante de Barthes a alturas extáticas), talvez inconscientemente prevendo o mar de informação visual em que agora nadamos – ou nos afundamos? Será que é o fato de vocês terem afirmado a verdade concreta do mundo pós-colonial, aquela que parecemos estar mais uma vez ignorando no Iraque, que os habitantes do país em questão é que devem ser aqueles a decidir sobre seu futuro coletivo? Será que é o jeito que vocês focalizaram aquele ar de compaixão patenteado, que nos anos entre lá e cá saiu dos filmes e agora está na televisão enfeitando semblantes tão variados como os de Diane Sawyer, Oprah Winfrey e Michael Moore?
São todas essas coisas. E é sua vivaz avaliação da dignidade liberal, que vocês caracterizam assim: “produz uma boa consciência para nós mesmos de maneira ordinária”. O que nós ocidentais, de todas as correntes políticas, não parecemos ser capazes de parar de fazer, ou fazer com que os outros parem de fazer por nós. E que o mundo não tem mais condições de agüentar.
Vejo vocês daqui a 32 anos – quando estiver na hora de abrir mais algumas latas.


Kent Jones
(Editor independente da revista Film Comment)
(Texto publicado no Tout va bien DVD Booklet, Criterion Collection, 2005 e extraído de audiovisualcontemporaneo.files.wordpress.com)

2 comentários:

  1. Curitiba, Março de 2015.
    Carta para Jane


    Pois é, Jane…
    Com um atraso de 50 anos tomei conhecimento da carta que Jean-Pierre Gorin e Jean-Luc Godard lhe mandaram, através de um filme que vi ontem.
    Achei a primeira parte uma chatice, mas resisti e acabei sendo premiada com um desfecho que me comoveu pela entrada em cheio na ética: que o país em questão, naquele caso o Vietnam, decida o seu futuro, cabendo ao Ocidente, que você foi chamada a encarnar, ficar com a boca fechada, como você está, de fato, na foto tomada como pivô para a missiva.
    Mas o filme não é só isso e nem tudo o que ali reluz é ouro, concorda?
    Para me explicar, ponho-me a tomá-lo destacando alguns fragmentos.

    1. Admirável a idéia de que um filme que proponha uma revolução seja, ele próprio, revolucionário. Algo que depois (ou terá sido antes?) acabou sendo “oficializado” por McLuhan como “o meio é a mensagem”. Acho o resultado muito interessante e, sendo essa a intenção, parece-me que foi bem realizada: o filme é diferente de tudo o que já vi em cinema e quebra os paradigmas, clássicos e modernos, ou seja, é revolucionário. O que não quer dizer que eu goste, no sentido de experimentar uma boa fruição. Prefiro o formato tradicional de cinema. Mas admiro.

    2. Sob essa ótica, a chatice inicial poderia estar a serviço do tema em pauta: detour, retorno, circuito, circulação em círculo. Com este insight, mais a idéia de que o meio é a mensagem, inscreveria aquela lengalenga dentro da apreciação enunciada no parágrafo anterior: ponto para os dois Jeans! Também posso pensar que se tratava de criar um clima mesmerizante no qual o desfecho ético produzisse um máximo de efeito. De fato, tal desfecho, sem tal prelúdio, talvez não nos surpreendesse tão ávidos por algum sentido.

    3. Admirável também que os Jeans tenham podido construir, com palavras e imagens que se podiam recortar em jornais e revistas, um filme – e não um filme qualquer: um filme que se inscreve na história do cinema e da cinefilia.

    4. Sendo eu “daquele tempo”, reconheço, no “recorta e cola” das imagens, um tipo de produto “artístico” que era, então, muito comum, mesmo na pequena cidade do interior onde vivia: cafés e bares “descolados” – a expressão ainda não existia – decoravam suas paredes com recortes de revistas e jornais, onde as manchetes da guerra do Vietnam não podiam faltar jamais. Eu me pergunto se Gorin e Godard inventaram o artifício ou o tomaram emprestado. Não que faça muita diferença, já que o homem faz a cultura que faz o homem, num enlace moebiano.

    5. Volto às minhas recordações de então, na pequena cidade do interior, para votar a favor da tese apresentada no filme, segundo a qual o vietnamita que aparece na foto-pivô tem uma identidade precisa com a sua luta: qualquer um, em qualquer lugar do mundo, saberia porque ele luta. Dou o meu depoimento de que sim – naquele tempo, mesmo na mansidão da barra em que eu vivia, nós sabíamos identificar um vietnamita e lhe éramos solidários, frente à guerra que levaram para dentro de seu país.

    6. Agora a foto ou, mais precisamente, a leitura que fizeram da sua foto, Jane: Você não achou admirável a abordagem que fizeram da imagem? Você em primeiro e alto plano – nítida e destacada. A população que você escuta, difusa: um de costas, outro desfocado, os demais compondo um fundo indistinto, todos de estatura inferior à sua... Seguramente uma foto carregada de intencionalidade e destituída de qualquer inocência, salvo feliz acaso ou favorável acidente, acaso ou acidente seguramente ausentes quando da escolha da foto: a escolha desta foto para a publicação (precisamente esta, entre tantas outras que certamente foram produzidas), com certeza, foi carregada de intencionalidade e destituída de qualquer inocência. Quaisquer que tenham sido a intenção e o propósito, que não vou tentar esclarecer, não lhe parece admirável que Gorin e Godard coloquem este problema no ar? Eu fico estarrecida e agradecida por essa lição de leitura, de análise e de questionamento dos significados possíveis de um signo imagético.


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    1. (cont)


      7. A partir daí, entra no ar, para mim, uma outra questão, que também não vou destrinchar, quanto à intenção e o propósito de Gorin e Godard ao escolher esta foto como pivô para seu filme. Apenas destaco que, aqui, como lá, é claro, para mim, que usaram você. Parasitaram sua presença icônica neste mundo. Sim e sim. O que também pode ser problematizado e questionado.

      8. Agora: ao “est(e)relizar” a sua militância, atribuindo à atuação da boa atriz a expressão facial de compaixão e solidariedade que a foto revela (terá sido isso mesmo que quiseram dizer, quando desdobraram a série de imagens onde diversos atores adotaram a mesma expressão???) – para mim eles vão longe demais. Ignoram, acaso, que a vida veio antes do cinema e que os bons atores são exatamente aqueles que conseguem reproduzir, na encenação, as faces que a vida – e a morte – colocam nos rostos humanos? Esqueceram que você, por saber representar as emoções humanas, nem por isso está impedida de vivê-las em carne própria? Ou apenas passaram – intencionalmente e sem inocência – ao ato de usar você para violentar a boa consciência da burguesia? A mim me parece que a última alternativa é bem coerente com a proposta revolucionária. Muito mais sórdida, também.

      9. Pois a boa consciência, Jane, só pode ser experimentada por um sujeito. A massa – burguesa ou proletária – não tem consciência, boa ou má. A massa é acéfala e sua constituição implica justamente no rebaixamento da razão e na exacerbação dos afetos, como ensina Freud em Psicologia das Massas e Análise do Eu. E essa “boa consciência”, como tudo o que é humano, equilibra-se entre a virtude (a ética) e o vício (o bem-estar comprado barato). Quem se decide por atacá-la (à boa consciência) deve estar preparado para andar no fio da navalha, correndo o risco de resvalar, ou para a complacência com o vício, ou para a degradação da virtude. Enfim, viver é mesmo muito perigoso, é arriscado demais, ensina Guimarães Rosa, na voz de Riobaldo.

      10. Encerro por aqui, Jane. E, só para dar mais uma volta no parafuso, eu me reconheço, também eu, parasitando você, para dizer o que penso disso tudo, ou desse quase nada.




      Vera Lúcia de Oliveira e Silva

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