sexta-feira, 20 de março de 2015

TUDO VAI BEM


(Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin, Tout va bien, França, 1972)

1. Na produção de Tudo Vai Bem, entra em cena o bendito financiamento da Gaumont: o Grupo Dziga Vertov finalmente faria um filme que seria distribuído e visto pelo público. Fazer politicamente os filmes políticos, diziam Godard e Gorin. Necessidades táticas de difusão, portanto: "Como fazer para atingir o máximo de gente possível?". É a essa pergunta que Tudo Vai Bem tenta responder de início. Para fazer um filme, contrata-se uma vedete (Jane Fonda), arruma-se para ela um par romântico (Yves Montand), cria-se uma história de amor entre os dois etc (a primeira seqüência do filme explica tudo passo a passo). A linha de montagem dos filmes do Grupo Dziga Vertov era uma questão de ordem; relação de produção, sempre. A mise en scène é uma prática política que deve gerar um dispêndio de energia, um rendimento (não financeiro, desta vez), um trabalho. Se a primazia é da produção, o filme em si é uma inversão que nos leva do produto acabado ao processo produtivo – e então nada mais justo do que mostrar, já de início, o talão de cheques se evaporando à medida que se preenche cada folha com um valor diferente, sempre justificado no canhoto como um gasto essencial para a feitura do filme. A translúcida afirmação de Serge Daney soa quase como uma explicação de Tudo Vai Bem: todo filme é antes de qualquer outra coisa um documentário sobre seu modo de produção. O próprio pensamento, em Tudo Vai Bem (e também em Sons Britânicos), se torna um produto em processo de manufatura – o espectador não é mais aquele que consome um extrato do real e se dá por satisfeito com a duplicação mecânica do mundo, mas sim alguém que precisa "jogar" com o filme. A assertiva brechtiana é bem conhecida hoje: arrancar o espectador de sua posição passiva – a passividade não era entendida como um dado natural da espectatorialidade, mas como uma produção histórica do sistema de representação da sociedade de classe. A forma "épica" é a crítica da forma "dramática", e lutar contra esta última se faz uma meta decisiva do cinema político tal como entendido pelo Grupo Dziga Vertov. Em Tudo Vai Bem Godard e Gorin pedem nada mais que uma "epistemofilia" de nossa parte, um desejo insaciável de ouvir mais, receber mais, processar mais. O espectador deve se deslocar para uma posição crítica... Mas isso é terreno já fartamente estudado. Passemos ao Número Dois.

2. A imagem é uma superfície, e a narrativa é uma passagem de superfícies, um trem que passo ao lado de um muro (como ocorre no final de Tudo Vai Bem). Imagens e sons brutos: significantes simplistas, primários, rudes, verdadeiramente grosseiros na sua platitude. Nada mais se passa na profundidade da ficção, na desarticulação inteligente do espaço teatral operada pela decupagem clássica. É antes um cenário em bloco o que interessa a Godard e Gorin; um espaço não decupado, não religado senão por contigüidade arquitetônica, passagem concreta de um compartimento a outro, radicalização materialista do espaço cênico. A câmera fará então um simples sobrevôo por este prédio fictício: uma dinamização das aparências. Para tanto, um gênio acorre a favor deles: o mega-cenário de dois andares construído por Jerry Lewis em O Terror das Mulheres serve de inspiração para a representação em estúdio da fábrica em que, gesto de sublevação em voga no pós-68, os trabalhadores mantêm o patrão refém dentro de seu escritório. O filme se põe, então, a passear por um cenário que só pode ser filmado por um lado – Tudo Vai Bem perde o contracampo. Ou melhor, o contracampo é tudo que lhe interessa, é a parte em que se encontram os técnicos, os equipamentos e os recursos todos que produzem o filme. Melhor ainda: o cenário filmado é o contracampo do que, como já foi dito em 1, constitui o filme em última análise. Campo: Yves Montand é um cineasta e Jane Fonda é uma repórter de rádio, e ela quer fazer uma reportagem na fábrica. O casal acaba também refém (luta de classe é luta de classe) e deixa aflorar a crise – clichê de casal burguês, sim. A imagem economiza no gesto, faz apenas o suficiente para que o espectador coloque nela sua etiqueta – como preços em produtos de supermercado –: a grande questão teórica do filme diz respeito menos ao motor das imagens do que ao seu fora-de-quadro (universo que contém a caixa de ferramentas, ou seja, as referências e coordenadas capazes de organizar essas imagens). Recuando estrategicamente, seria o espaço-fora que remete ao próprio social, ao próprio lugar do espectador (que é quem decide o que fazer com as imagens). Tudo Vai Bem não pertence à ordem da linguagem, mas sim do receptáculo de formas. Logo: "Juste une image" – a imagem de cinema não é mais o reflexo inocente de um mundo intrinsecamente ambíguo, mas sim um produto discursivo, uma manifestação humana sujeita a todo tipo de falha e/ou falsidade. Para um cinema feito em plena era da multiplicação de significados que começam a transbordar para um terreno virtual, cabe a decisão corajosa de rapidamente se assumir como mero atualizador de enunciados. Um cinema do curto-circuito, cinema da duração não porque fetichiza o escoamento do plano-seqüência, mas porque encontra o tempo necessário, a duração suficiente seja lá qual for o rendimento buscado através das imagens (a publicidade não assombra esse cinema, apenas o estimula a ir mais longe). Contracampo: "Para falar dos outros, é preciso ter a modéstia e a honestidade de falar de si mesmo. A novidade é não falar de si mesmo em si, mas de falar de suas próprias condições sociais de existência e das idéias que daí resultam" (Jean-Luc Godard). 

3. O som parasita a imagem – e por tabela seqüestra o fluxo cognitivo do espectador. A pista de som traga as imagens do filme. Técnica de ventriloqüismo: modular as imagens através do som, transformá-las em referentes de um discurso que lhes é exterior, simular seus movimentos labiais e fazer valer um conjunto de vozes que debatem o conteúdo visual do filme, discutem, concordam ou discordam. O som é chapado no primeiro plano, mas a superfície sonora e a superfície icônica se descolam uma da outra, vão para caminhos independentes (se de vez em quando coincidem, normal: a redundância é também um recurso sonoro válido). Nos filmes do Grupo Dziga Vertov, o som dá a volta por cima da imagem – revanche do som frente ao imperialismo da imagem, à primazia do visual na nossa cultura. Tudo Vai Bem vira uma máquina de dispersão que dispara lições rápidas e teorias "instantâneas", uma agressiva verborragia contra a pseudo-neutralidade da imagem. A confluência está na cena do supermercado, que consiste num único e memorável plano-seqüência. Jane Fonda passeia pelo supermercado, indo de um lado a outro acompanhada por uma câmera em travelling lateral, enquanto vemos ao fundo os manifestantes saquearem as prateleiras. Na melhor parte do plano, Anne Wiazemsky protesta contra um "intelectual de esquerda" que vende seus livros empilhados como se fossem legumes. O uso da profundidade de campo é notável: o jogo de superfícies fica ainda mais complexo. Aquele plano é a tentativa de pôr o mundo inteiro em um travelling (como em Weekend). Tentativa infinitamente bela em seu fracasso inevitável.


Luiz Carlos Oliveira Jr.
(Texto original:  
http://www.contracampo.com.br/75/tudovaibem.htm)

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