sexta-feira, 10 de abril de 2015

As estranhas e selvagens canções de Miguel Gomes (fragmento)


He thought he saw a Rattlesnake
That questioned him in Greek:
He looked again, and found it was
The Middle of Next Week.
"The one thing I regret," he said,
"Is that it cannot speak!"
1

(CARROLL, 1988, 514)

O cinema português tem se consolidado nos últimos vinte anos como uma reserva de surpresas, de pequenos tesouros, de experimentos preciosos e fartas recompensas. Se até o início da década de 2000, tinha em Manoel de Oliveira praticamente o único representante de renome internacional (embora João César Monteiro fosse altamente reconhecido em círculos mais especializados), a partir de diretores como Pedro Costa, João Pedro Rodrigues, João Nicolau e Miguel Gomes, Portugal se caracterizou em alguns aspectos como uma vanguarda fílmica ou pelo menos como uma "onda" em um sentido vagamente similar àquele do "cinema iraniano" dos anos 1990 ou "cinema romeno" dos 2000.

Inegavelmente o centenário Manoel de Oliveira continua sendo a principal referência portuguesa numa escala mundial, nem só do cinema, inclusive. Dos nomes das gerações subsequentes a Oliveira e João César Monteiro, todavia, Pedro Costa é talvez o mais influente e desafiador deles, apresentando uma trajetória impressionante, que foi do cinema mais narrativo dos primeiros filmes (O Sangue (1989), Casa de Lava (1995)) às quase-instalações simultaneamente documentais e vanguardistas (No quarto da Vanda (2000) e Juventude em Marcha (2006)). De fato, seus filmes se tornaram referência para algumas das experimentações mais ousadas no cinema atual, para uma boa parte dos entrecruzamentos entre documentário e ficção, e confundiram as fronteiras entre o que se considera estritamente cinema e as artes visuais, ainda que nunca tenha se constituído como cinema de artista no sentido tradicional.

Podendo ser vista também como reflexo de todas essas influências precedentes do cinema português e evidentemente de outros realizadores do cinema mundial, a obra de Miguel Gomes me parece particularmente incisiva pelo modo através do qual adere, rechaça e transforma - tudo isso ao mesmo tempo - o realismo preponderante no cinema dito de arte contemporâneo e nas suas estratégias literárias de construção narrativa. Em todos os filmes de sua ainda relativamente curta carreira, ele conjurou um mundo onde música, invenção, humor e nonsense dão o tom. Gomes opera pelo menos em dois níveis, o de um realismo convencional e o de uma subversão imperiosa desse realismo, seja através da exploração dos limites entre ficção e real, seja no jogo com a linguagem fílmica ou mesmo no processamento de suas citações cinéfilas.

(...)
De certo modo, Tabu (2012) levou Gomes a um retorno mais estruturado, menos livre, e certamente menos audacioso que Aquele querido mês de agosto, ainda que mantendo a voluntariosa excentricidade que define seu estilo. Assim como em A cara que mereces, o filme também está dividido em duas partes (Paraíso Perdido e Paraíso, como a divisão proposta por Tabu (1931) de F.W. Murnau, só que com a ordem invertida), as quais são precedidas por um prólogo. Estamos nesse início em um "filme dentro do filme", na verdade um pequeno excerto do que parece ser uma aventura colonial, que a protagonista da primeira parte, assiste. Essas primeiras cenas mostram um estranho homenzinho na África, um taciturno e melancólico - assim adjetivado pelo narrador - explorador português assombrado pelo fantasma da esposa e perseguido por um enorme crocodilo. Este rápido e inusitado começo fornece pistas que só serão decifradas nas duas partes que se seguem.

O paraíso perdido da primeira parte trata principalmente de Pilar, uma solteirona lisboeta católica de meia-idade, envolvida em causas religiosas e sociais. Um pintor (com quem Pilar tem um relacionamento platônico), e uma vizinha idosa, Aurora, junto com sua empregada cabo-verdiana, Santa, perfazem o círculo de convivência da sua monótona existência. A morte de Aurora estabelece o ponto de partida para o encontro com Gian Luca Ventura (e não parece uma simples coincidência que esse tenha o prenome italianizado de Godard e o mesmo sobrenome de um personagem central do cinema português contemporâneo, no caso o Ventura deJuventude em Marcha, de Pedro Costa), figura misteriosa que torna-se o narrador da segunda parte. A monotonia realista da primeira dá lugar à evocação romântica e à aventura experimental da história em primeira pessoa contada por Ventura. O foco de Paraíso, a segunda parte, é a história de Ventura e Aurora, jovens amantes nos turbulentos anos 60 no sopé do fictício Monte Tabu, em uma África sob vários aspectos "de fantasia".

«Nesta espécie de museu imaginário do colonialismo português, que casa a memória portuguesa com uma memória universal do colonialismo (é uma África aventurosa e idealizada, “exótica” como a de um filme americano, da RKO por exemplo), Aurora e Ventura vivem uma história de amor ilícito e terminal, um filme mudo narrado a posteriori, sem voz (excepto a voz das canções) mas com muitos sons (os sons da selva, cuidadosa e arbitrariamente colocados - o trabalho de som é espantoso, a fotografia é extraordinária). Tudo está condenado desde o princípio, o no future deles é o mesmo no future de Portugal em África. Correm para lado nenhum, em caminhadas pela savana, em movimentos de câmara que parecem querer encontrar os travellings de Murnau no Sunrise - às vezes param para fitar o espectador olhos nos olhos, misto de desafio e pedido de compaixão, como nenhuma personagem de cinema clássico ousaria.»4

Tabu tem, portanto, muito do élan literário de A cara que mereces, especialmente no prólogo e na segunda parte; compartilha comAquele querido mês de agosto o entusiasmo minucioso pela música no uso criativo de canções pop e da trilha sonora escancaradamente romântica, mas neste filme, de fato, as referências são muito mais diretamente cinematográficas. Desde o homônimo de Murnau e Flaherty (de onde não vem apenas o título e subtítulos, mas sobretudo a bem sucedida combinação entre melodrama e travelogue, entre romance e geografia, entre mise en scène e composições paisagísticas) e outros exemplos do cinema canônico (Ophüls, Ford, Borzage, entre outros), passando pelas séries de aventuras estilo Tarzan ou Hatari, até os épicos colonialistas estilo Out of Africa (Gomes mencionou em uma entrevista que Tabu seria uma espécie de Out of Africa disfuncional5), o Oliveira deAmor de Perdição e as fontes usuais que compõem seu repertório de influências e proximidades (Rivette, Godard, Wes Anderson, Monteiro, etc) - embora neste último filme tenham prevalecido as referências mais clássicas.

 A recepção a Tabu por parte da crítica foi predominantemente positiva, mas foram também apontadas algumas objeções fortes, especialmente no que se refere à política depreendida do filme. Alguns críticos observaram um excessivo distanciamento das questões coloniais implicadas no filme e de certo modo condenaram os artifícios (vistos como ingênuos ou simplistas) que, nesse ponto de vista, contribuiriam para uma falsificação do real, para a construção de uma visão escapista, nostálgica e conformista com relação à brutalidade do imperialismo europeu6.

Parece-me, entretanto, que, apesar de privilegiar a evocação de um universo cinéfilo e de, assim como nas suas obras anteriores, estar mais preocupado com a construção de um estilo narrativo singular, com marcar seu próprio tom, às vezes contaminados por uma sorte de hiperfabulação, Gomes não passa ao largo da política, menos ainda é ingênuo ou escapista no seu olhar para o colonialismo, ou mesmo para as questões políticas contemporâneas.

Ao contrário, o olhar político sobre o colonialismo e sobre o pós-colonialismo aparece desde o início, desde o prólogo com seu crocodilo melancólico e o ridículo e infeliz explorador. Nos detalhes transpiram um discurso crítico e uma noção de história: o catolicismo engajado de Pilar, a velha Aurora e sua paranoia racista, Santa lendo Robinson Crusoé, os sintomas de um país em crise, a passeata contra um genocídio indeterminado, os africanos no "Paraíso" da segunda parte, o exotismo de quadrinhos, o modo como é filmada a morte de Mário. Tabu inventa uma África para falar da Europa contemporânea, de Portugal, da saudade portuguesa (saudade das colônias, do colonialismo, saudade de ser império). Essas fantasias nostálgicas, esse romantismo deslavado, contudo, revelam-se intencionalmente artificiais, como só a partir do falso, do postiço fosse possível desenhar a fina e melancólica ironia que encobre sua narrativa. Não se está diante de uma mera brincadeira pós-moderna com o repertório cinéfilo ou mesmo de um jogo de linguagem fílmica. Com sua história de amor fracassado (ou antes, amores fracassados) e suas canções melosas, Tabu é uma sofisticada e bela demonstração de como o frívolo pode ser um modo de ler a história a contrapelo, de como o artifício pode se revelar um protesto contra o contingente, de como a ironia pode ser um signo de resistência, de como o supérfluo pode comunicar o político, de como o cinema está sempre pensando à nossa frente.
Angela Prysthon
(Texto na íntegra e notas 
http://www.lafuriaumana.it/index.php/2-uncategorised/153-angela-prysthon-as-estranhas-e-selvagens-cancoes-de-miguel-gomes)

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