sexta-feira, 17 de abril de 2015

Non, ou A Vã Glória de Mandar


No princípio é um título compósito que se enraíza numa complicada alternativa entre o messianismo histórico do padre António Vieira, aqui convocado através do «Sermão da Terceira Quarta-Feira da Quaresma» – “Terrível palavra é um NON, não tem direito nem avesso, por qualquer lado que a tomeis, sempre soa e diz o mesmo, lido do princípio para o fim ou do fim para o princípio, sempre é NON.”  – e a imprecação do Velho do Restelo – “‘Ó glória de mandar, ó vã cobiça/ desta vaidade a quem chamamos Fama!’”  –, subtil e significativamente reformulada. No princípio é uma árvore gigantesca, impossível de filmar. Só podemos rodeá-la e, em vão, andar à volta da sua imponência tão ostensiva quanto oculta: sem direito nem avesso, a metade aérea que vemos erguida é simétrica à outra metade que, pelo chão, se afunda. No princípio é a vontade de desenterrar a História oficial para escovar a mitologia pátria a contra-pêlo. Da epopeia à tragédia, o programa de NON mais não é do que um virar de Os Lusíadas ao contrário. Trata-se de pesar o destino da “primeira nação da Europa”, não à luz das suas vitórias militares – e a História, como o nota Benjamin, costuma ser contada pelos vencedores –, mas a partir das batalhas perdidas. Trata-se, em suma, de tentar perceber que país é esse que, de Viriato ao “orgulhosamente sós”, só contra os romanos e contra o mundo, se funda na recusa da civilização. Estranha é a questão, difícil de circunscrever o “sentido último” de uma história que se inicia na auto-liquidação trágica de um reino sem transcendência. Dois mil anos passados, a verdade é, como diz Manoel de Oliveira, secreta e inexplicável. Resta avaliar o que se ganha na derrota.
Projecto antigo acalentado ao longo de mais de uma década – as primeiras referências de Oliveira ao que viria a ser o filme datam de meados da década de 1970, altura em que trabalhava em Amor de Perdição (circunstância que confirma a incidência histórica e política da leitura que realizador faz do texto de Camilo Castelo Branco) –, o 25 de Abril de 1974 era, já nesta versão inicial, o pano de fundo de NON (aliás, de “Não”, como então se intitulava). A acção devia situar-se num teatro de província onde se estreava uma peça de teatro em quatro actos sobre Portugal e a sua história. Quatro eram, também, as campanhas frustradas: a referida luta de Viriato contra a hegemonia romana, a batalha de Toro contra os espanhóis, o desastre de Alcácer-Quibir e as guerras coloniais. Quinze anos passados, Oliveira terá percebido que a moldura teatral inicialmente prevista poderia ofuscar, sob o manto das questões ligadas à representação, as verdadeiras motivações do filme. Conquanto a teatralidade e, até mais do que isso, a inverosimilhança e o artifício tosco continuem a ser, em NON, importantes factores de desconstrução da tonalidade epopeica (vejam-se, por exemplo, as vestimentas e perucas dos insurrectos lusitanos, a cena do Decepado na batalha de Toro ou o episódio da morte do príncipe D. Afonso, filho de D. João II), a acção seria transferida para um dos principais cenários do imaginário nacional, para ser protagonizada por aqueles que foram os últimos a pagar a factura do nosso delírio imperialista. África, “palco da nossa derradeira aventura trágica, como o fôra da nossa primeira aventura épica, seria, como o nota João Bénard da Costa, o verdadeiro teatro das operações, lugar do papel que o lusíada por si próprio se tinha inventado e donde finalmente se bania, cumprindo um ciclo de derrotas, um ciclo em que o destino sempre disse não a Portugal ou aos seus sonhos mais grandiloquentes.”
Colocada na boca dos soldados que apontaram as armas ao inevitável colapso colonialista, a revisão histórica conduzida por Manoel de Oliveira desenrola-se numa complexa arquitectura narrativa. A evocação de muitos dos momentos fulcrais da nossa existência como povo e como país – formulada num tom que alguns confundiram com simplismo histórico ou com didactismo passadista, quando, efectivamente, se trata de algo próximo dos princípios brechtianos do teatro épico –, responde ao ponto de vista desses soldados ao mesmo tempo que perspectiva, num contexto mais alargado, o fim da guerra africana, o fim do Estado Novo, o fim da epopeia ultramarina. O modo como, à excepção do alferes Cabrita (que tem estatuto de narrador delegado), estes soldados se expressam sobre a guerra em que participam e o momento histórico de transição em que intervêm é um apanhado de contradições e de noções gerais que, na maioria das vezes, não ultrapassa, deliberadamente, os lugares comuns. Mas se a guerra, como a História, é feita por homens comuns, o olhar de Oliveira vai no sentido antitético da individuação e da transpersonalização de cada um destes soldados desconhecidos, pintando o retrato transtemporal de um povo com uma justeza que só encontra paralelo nos painéis de Nuno Gonçalves. As batalhas perdidas são, assim, recordadas (e encarnadas) por aqueles mesmos que se preparam para, eles próprios, perderem mais uma guerra. Esse é, como se diz, o altíssimo preço da liberdade, condição necessária para a histórica mudança que aqui se vive e discute em primeiro grau, entrelaçando a derradeira morte no campo de batalha de Alcácer-Quibir (numa referência a Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett), com a derradeira morte do Império na cama de um hospital de campanha. É esta a transfusão de sangue que liga a aparição de D. Sebastião numa manhã de nevoeiro, que outra não é que a manhã do dia 25 de Abril de 1974 (assim o sentencia, em voz off, o próprio Manoel de Oliveira), à febre agonizante do alferes-narrador moribundo: é este o sentido final de todas as histórias. A Revolução de Abril de 1974 ao espelho de Alcácer-Quibir. Alcácer-Quibir que é o maior desastre de toda a nossa história. Desastre que se torna mito. Mito que se torna verdade. Verdade que é algo de secreto e inexplicável, o sentido último que tudo explica. E se parafraseamos algumas das afirmações constantes em NON é para melhor ocultar esta misteriosa genealogia que liga a maior de todas as derrotas à maior de todas as vitórias recentes. A conquista é a da negatividade, a licença, ganha a ferros, de pensar o país longe da glória, naquilo que não foi.
Como a serpente que engole a sua própria cauda, NON não se limita a traçar um círculo por momentos aparentemente distantes da História de Portugal. O filme ocupa, ele próprio, um lugar axial na filmografia do seu autor. Se Manoel de Oliveira disse uma vez que todo o seu trabalho seria incompleto se não tivesse feito NON, vinte anos passados podemos ver o filme como centro de uma das espirais mais coesas do cinema oliveiriano. Nele se radicaliza a reflexão sobre a portugalidade iniciada com Le Soulier de Satin (1985), esse que é um filme de transição entre a problemática dos dramas individuais, em jogo na dita “Tetralogia dos Amores Frustrados” (por maior que aí seja o peso dado às instituições) – de que fazem parte O Passado e o Presente (1972), Benilde ou a Virgem-Mãe (1975),Amor de Perdição (1978) e Francisca (1981) – e a interrogação sobre os destinos colectivos, em filmes onde as personagens se distanciam de desaires singulares para se elevarem à condição de agentes históricos. É nessa linhagem que temos de incluir A Divina Comédia (1991) – a que Oliveira se refere como uma “continuação” de NON, estendendo a questão do imaginário histórico nacional às raízes da cultura ocidental –, mas, também, Palavra e Utopia (2000), Um Filme Falado (2003), O Quinto Império: Ontem como Hoje (2004), Cristóvão Colombo: O Enigma (2007), ou o mais recentePainéis de São Vicente de Fora: Visão Poética (2009). É talvez este último filme que mais claramente dialoga com NON – nomeadamente com o episódio da Ilha dos Amores – e que melhor explica o ponto de vista de Manoel de Oliveira sobre a História (a História que é sempre sangrenta): o que fica para a humanidade não é o que se tira, mas sim o que se dá.

António Preto
(Texto extraído de 
http://www.buala.org/pt/afroscreen/non-ou-a-va-gloria-de-mandar)

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