quinta-feira, 23 de abril de 2015

Shock Corridor (1963) de Samuel Fuller


cinema de Fuller é isto: in your face, cru no tratamento das personagens e pouco preocupado com a susceptibilidade do espectador. "Shock Corridor" (1963) começa sem grandes contextualizações sobre quem é o protagonista ou como foi este levado a pensar pôr em risco a sua sanidade mental por causa de um prémio prestigiante... Falamos de um jornalista que não conhecemos de lado nenhum, mas que Fuller nos apresenta no momento mais decisivo da sua carreira tal como da sua vida: infiltrar-se, sim ou não, num hospício fazendo-se passar por louco para saber quem foi o autor material do homicídio de um dos pacientes, de nome Sloan.

A determinação do protagonista em ir para à frente com plano tão insensato leva a melhor: de súbito, "Shock Corridor" transforma-se numa espécie de reportagem filmada sobre a viagem que Johnny Barrett faz pelo corredor (sem fim...) onde param algumas das mentes mais desequilibradas da América. E uma delas bem que podia ser vista como a metáfora perfeita para o temperamento crítico de Fuller: o negro racista, supremacista, segregacionista, que sonha a cores (!). "America for americans", grita ele em plano contra-picado, instantes antes de colocar na cabeça um capuz do Ku Klux Klan. Onde foi Sam Fuller buscar os balls para filmar esta cena em 1963? A ironia sulfurosa com que tratava os temas mais incandescentes da sociedade perturbou muita gente e provavelmente impediu que Fuller fosse considerado em vida justamente como um dos maiores cineastas norte-americanos.

O negro nazi - ou a forma como a cor interrompe violentamente o preto-e-branco - simboliza de algum modo a absoluta rejeição - era quase uma alergia... - à crítica unidimensional e maniqueísta (estilo preto no branco) que Hollywood fazia da realidade norte-americana. Ao mesmo tempo, os espaços de cor em "Shock Corridor" são mais opressivos que o preto-e-branco do asilo de loucos, que, por sua vez, se vai tornando lentamente não numa prisão mas num lugar de libertação para a catatonia (o verdadeiro "eu"?) de que Barrett desconhecia padecer.

Afinal, quem está louco aqui: os que passam os dias a apodrecer naquele corredor, sem fazer nada, ou os que lá fora estão prontos a abdicar da sua integridade (moral e física) por causa de um Pulitzer? O público de 1963 terá ficado chocado com o pessimismo impiedoso de Fuller e a forma como este filmou a passagem de um homem (pretensamente) são para um estado de total apatia (pretensamente insana).

O público de hoje não se sentirá melhor: a construção dramática de "Shock Corridor", a truculência intemporal da sua mensagem, a montagem alucinante de som e imagem, tal como a forma animal e crua como Fuller pega na câmara (exemplo da cena da luta entre Barrett e Wilkes) fazem com que este filme se mantenha mais fresco hoje do que a maioria das sátiras jornalísticas que o sucederam. Nem mais: corajoso e brutal, ontem como hoje.

Luís Mendonça
(Retirado de http://cinedrio.blogspot.com.br/2008/12/shock-corridor-1963-de-samuel-fuller.html)

2 comentários:

  1. Gosto de caricaturas. O artista capta, com uma precisão invejável, o traço cômico que se trata de ressaltar e o expõe para dizer algo da verdade. Constrói, em imagem, um equivalente do chiste na linguagem das palavras.

    Exatamente por esse gosto, acho que consigo captar a sua antípoda: o fracasso de uma intenção que se pretenda séria e que desaba no caricato.

    Caricato é o adjetivo que me ocorre para qualificar a história contada pelo filme Shock Corridor – só a história, ressalvo. Ressalvo e tento me explicar. O filme, parece-me, propõe uma metáfora (alegoria, para quem prefere) do ser humano. No entanto, a metáfora se constrói sobre um pântano de preconceito e, por isso, para mim, não se sustenta: não há terreno sólido sob seus pés.

    O mesmo preconceito que denuncia – e é simplesmente genial colocar um negro “fundando” a Ku-Klux-Klan e “operando” liderança em seu nome – vaza por toda parte na história, apenas trocando de objeto: sai da diferença racial, onde é sempre muito explícito, e se derrama no tratamento dado à loucura, onde uma das formas do racismo sempre corre por baixo do pano, fiel ao nosso velho modo de expressar o “narcisismo das pequenas diferenças”.

    Eu leio nesse filme, e não peço que me acompanhem na leitura, um profundo desrespeito à loucura, expresso de várias maneiras: no tratamento satírico dado à psiquiatria e aos psiquiatras, apresentados como idiotas estereotipados e, portanto, perfeitamente previsíveis; na apresentação dos internos, salvo raros momentos de exceção, como bobos alegres, alegrinhos na sua alienação; numa certeza antecipada de que o louco é sempre perigoso e está sempre no limiar do crime (a cena das “ninfomaníacas” canibais é simplesmente patética); na transmutação de um “corredor chocante” em um hospício de comédia.

    Outro preconceito que o filme materializa é nossa confortável certeza de que a loucura se produz de fora para dentro, com o que estamos todos assegurados: basta não se internar num hospício e estamos salvos. O triste é que também convida à mediocridade: basta não querer levar a paixão – amor e trabalho – ao limite e estaremos protegidos da insanidade.

    O pior, entretanto, ainda está por vir: o filme abre uma brecha para se pensar a loucura como uma alternativa melhor e mais satisfatória que a insensatez do homem “normal”. Incensando e glamourizando a loucura, atingimos o fundo do poço do desprezo que lhe dedicamos, roubando-lhe o último resquício de dignidade que lhe resta – o fato de ela representar a mais trágica maneira de se sofrer.

    A gente não deve se iludir: a loucura é triste – muito triste (Konrad o assinalou no debate); a loucura é dolorosa – muito dolorosa; a loucura é trágica. Não é à toa que ela desperta toda sorte de repulsa e desqualificação. Mas a esta tendência eu acho que é preciso resistir. Quem quiser.

    Se Samuel Fuller pretendia comunicar exatamente essa leitura, comigo ele conseguiu. Eu li. Mas acho que não. Acho que ele disse o que não sabia que estava dizendo – que é a maneira mais poderosa de confessarmos a verdade.

    Agora, para mim, num momento do filme ele entrou em cheio na metáfora da loucura – na hora da tempestade: o homem absolutamente só e desamparado, submetido a um temporal do qual não tem escapatória (chove dentro!), avassalado por um excesso de violência que só mesmo a catarata para representá-la (ironicamente – ou sarcasticamente – ou romanticamente – numa cena colorida). Essa cena corresponde ao meu entendimento da loucura.

    Essa decalagem entre o que eu penso e o que o filme mostra me produziu um distanciamento durante sua exibição. No instante, isso foi tudo o que pude ver. No tempo que se seguiu foi que pude compreender a natureza do rechaço que me afetou. Estou, agora, em momento de concluir.

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    1. A distância, entretanto, colocou-me numa perspectiva proveitosa para melhor apreciar as cenas, a iluminação, o decoração dos ambientes (retratos de Freud e Jung justapostos em um dos consultórios é um cúmulo de ironia), o infinito do corredor, os recursos de inclusão dos delírios, o apelo à cor num filme que parece anterior ao cinema a cores, o desempenho dos atores, o movimento da cena de luta entre investigador e suspeito na cozinha (cenário do crime que se investiga, o que põe uma tensão de assassinato no ar) enfim... o aspecto material das cenas ressaltou-se para mim, porque meu interesse, desligado da história e das legendas, sobrou para ver o que havia para ser visto: soberbo!

      No meu resumo da ópera, Samuel Fuller, mesmo quando falha no argumento , é vitorioso na argumentação. Se não me encontro representada no enunciado, nem por isso deixo de me curvar à enunciação – e considero este filme um triunfo da estética sobre a ética.

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