domingo, 17 de maio de 2015

No Quarto da Vanda


(Pedro Costa, Portugal, 2000)

Perto do final de No quarto da Vanda (2000), há um dos planos de que eu mais gosto, o plano de uma velha cabo-verdiana, com uma miúda também de Cabo Verde.

A velha está sentada num quarto e a câmera “está sentada” atrás dela, deixando-nos ver apenas o que está no campo de visão da velha. Em seguida surge uma criança, que, depois de entrar e sair, detém-se na soleira da porta, junto a uma bicicleta. A criança vira-se, então, para nós (para a câmera e para a velha) e, apoiando-se ora num pé ora no outro, faz balouçar a bicicleta, que, assim balouçada, buzina. Descobrindo o efeito sonoro do movimento, a criança repete-o um sem-número de vezes, sempre de costas voltadas para a rua e sempre a olhar para a velha. Esta não esboça a menor reação ao jogo da miúda, mas, embora não lhe vejamos o olhar, sabemos que está com toda a atenção nela. Atenção que, de certo modo, é devolvida, pois a brincadeira da criança, sendo também uma brincadeira solitária, é uma brincadeira para a velha, ou uma brincadeira com a velha. Nem uma nem outra dizem uma só palavra, a velha sempre imóvel e a miúda repetindo sempre o mesmo movimento. Nesse filme de longuíssimos planos, esse é um dos planos que mais dura. Nesse filme de rituais, esse é um dos planos mais ritualísticos. Nesse filme de mistérios, esse é um dos planos mais misteriosos. Nunca até esse momento – pelo menos ao que julgo, só com duas visões do filme – essas personagens nos foram mostradas. Nunca mais as voltaremos a ver. Pode ser que sejam avó e neta, pode ser que sejam, como todos são, vizinhas nesse esventado bairro das Fontainhas. A velha – já o disse – não tem reações. A criança está manifestamente divertida com a sua brincadeira, mas, a partir de certa altura, um estranhíssimo mal-estar começa a dominar a situação e há um crescente peso letal no que vemos, o que nunca varia.

 Abruptamente (quase todos os cortes desse filme são abruptos) Pedro Costa corta, e vemos, numa bandeja rodeada por moedas e uma folha da funerária da Venda Nova com alguns dizeres, como que uma fatura. Esse, pelo contrário, é um plano brevíssimo, que nem nos dá tempo de ler o que está na folha. Mas, sem nenhuma pista para isso nem indicação em que me apoie, dei por mim a “inventar” uma história, que não está no filme. Alguém morreu naquela casa, talvez o marido da velha, talvez o avô da criança. Atrás da velha, pode bem estar um cadáver ou um caixão, que a criança vê, mas nós não vemos. A concentração da velha vem da sua súbita solidão, apenas com aquela criança, de quem, a partir desse momento, é a única proteção e a única guardiã (um pouco como a avó de Vanda e de Zita, essa avó por alma de quem Zita jura e de quem as duas tanto se lembram). A brincadeira da criança é a sua resposta à morte, o seu modo de chamar a avó à vida. O som da bicicleta é um dobre de finados e um toque de alvorada, um modo de esconjurar fantasmas numa casa povoada por eles. Pouco depois (creio que é o terceiro plano depois desse) Pango dirá (após um dos mais sublimes grandes planos de Vanda): “morar em casas fantasmas que outras pessoas deixaram. Estive em casas que nem uma bruxa queria lá morar. Mas também estive em casas que valiam a pena. Foram casas que as pessoas abandonaram, mas, se estivesse lá uma pessoa de bem, eles até nem mandavam abaixo. Foi assim... casa atrás de casa”. Depois de um longo silêncio, em que, no escuro da imagem, os contornos se tornam mais nítidos, o “Nhurro” (como Vanda também lhe chama), de quem vimos, muito antes, a única lágrima do filme, acrescenta: “Já paguei mais pelas coisas que não fiz do que pelas coisas que fiz”. Segue-se o plano do gato, o plano mais desmedidamente surreal de um filme que também habita nessa dimensão, ou sobretudo habita nessa dimensão, tendo em vista que nada é o que parece e nada aparece que seja só o que é.

Lembrei-me, então (volto ao plano da bicicleta), da Casa de lava (1994), segundo longa-metragem de Pedro Costa, quase todo passado, se bem se lembram, em Cabo Verde e entre cabo-verdianos. Esse filme também é o exterior do interior que Casa de lava é, ou o interior do exterior que Casa de lava é. Pessoalmente, para alguém mais conhecedor da cultura cabo-verdiana, o balançar ritmado da miúda poderá ser, mais expressamente, o que de forma obscura entrevi nele. Ou não. As visões mudam, conforme se está dentro ou se está fora, e No quarto da Vanda (a não ser no quarto de Vanda propriamente dito, no quarto das meninas e nalguns declarados exteriores) nunca sabemos ao certo se é dentro ou fora que estamos. Podem ser casas, ruínas de casas, caminhos entre casas, relento ou abrigo. Fora ou dentro, quase nunca se está certo, quase nunca é certo. O espaço, bem como o tempo, perdeu fronteiras no bairro e para as pessoas dele. Antigamente, sabemo-lo por Vanda e por Zita, não era assim. Ninguém sabia que Geny vendia droga ou onde a vendia. Mas agora lembro-me que também me recordei de Geny ao ver a velha caboverdiana, essa Geny, máscara impressionantíssima, que só vemos no princípio do filme e bem pode ser – ou não ser – a que morrera na ambulância, quando o filho lhe negou o dinheiro para a droga, a Geny que um dia estava e no outro dia já não estava, como quase tudo, ou quase todos ali.

Lembrei-me também – estou ainda no plano da bicicleta – de um texto admirável que Pedro Costa escreveu, há muitos anos, para um catálogo da Gulbenkian-Cinemateca, sobre o último plano da sequência em que, em A terra dos faraós (Land of the pharaoh, Howard Hawks, 1955), a rainha Nailla morre para salvar do veneno de uma cobra o seu filho, o príncipe Zanin. Pedro Costa escreveu, então: “Tudo o que se passa nesse extraordinário plano não pode ser dito. Ele não é a imagem do filme A terra dos faraós, mas todo o filme está contido nele. A pressão do Tempo, a Morte no plano, no filme, explode-nos na cara (...) Não há remédio; não podemos deixar de ver. Deve haver um limite para além do qual a imagem estática, frontal, ascética, torna-se insuportável e esse traço invisível, essa ferida, jamais poderemos deixar de a ver”. Mutatis mutandis, essas palavras são premonitórias para o plano da miudinha com a bicicleta em No quarto da Vanda. Esse plano é por igual insuportável, num filme que também é um “longo pesadelo”, como A terra dos faraós foi para Pedro Costa, num filme que também é “um filme negro, sufocante e perdido desde o princípio. Só lá poderemos entrar perdidos também”.

Não é só esse plano, a que por obscuras razões fiquei tão preso, que é insuportável. Todo o filme o é, desde que as sombras de Vanda e Zita formam o écran logo no primeiro plano do filme, quando se ouvem as primeiras tosses e se veem as primeiras moscas, e se atinge o primeiro clímax, “que nome tão feio”. Além disso, houve a moça que matou o filho por um conto e quinhentos, certinho. Quando digo insuportável, não o digo no sentido que dará consolo aos aflitos, às almas sensíveis que não são capazes de matar uma galinha, mas são capazes de comê-la, a que se refere Sophia num poema. Digo-o para me referir a um filme que está para além do limite do que se pode ver, mas que jamais podemos deixar de ver. E “a imagem só tem uma salvação: tornar-se criadora ou destruidora”. Quando a imagem se arremessa como se arremessa nesse filme, falar de criação ou destruição deixa de ser dilemático ou muito menos antinômico.
Porque é que – por exemplo – os planos regressam tantas vezes muito depois de começados? Penso no plano da primeira transação (ou devia chamar-lhe transfusão?) entre o negro e o russo, que começa, quase logo no início do filme, em torno de falsos pretextos de ajudas domésticas (ninguém fala com ninguém, ninguém ouve ninguém, ambos sabem a que vieram e a que foram, “Deus Nosso Senhor nos ajude”) e termina, lá bastante para o meio, quando o russo já se “orientou” – que nome tão bonito. E o russo sai, sem saber já de que terra é, desorientado nessa desorientação.

Porque é que, por exemplo, entramos e saímos tantas vezes no quarto de Vanda (estamos lá muito tempo, mas não todo o tempo) nesse quarto onde ela está só, ou com a irmã, ou com o desamparado rapaz das flores, ou com Pango? Há um limite? Há, mas não sabemos qual é e nunca me pareceu que fosse quando ele se atinge que Pedro Costa sai de lá para percorrer outros espaços e outros tempos do bairro. A Pango, Vanda dirá que ele devia ter batido à porta, pois ela podia estar “descomposta”. Alguma vez a vemos ou vimos “composta”, qualquer que seja o sentido que a palavra possa ter?

Já o disse num outro texto. Não fiquei a amar Vanda. Com duas visões, o meu amor vai mais para Zita, mulher às vezes quase botticelliana, sempre de negro vestida, ou para o Muletas, tão triste, tão triste, com aquela história da D. Rosa do 7º andar, que lhe espetou com dois iogurtes, em vez do dinheiro que ele queria. “Foda-se. Dois iogurtes. Fiquei fodido. Desci por aí abaixo e só pedia a Deus que os iogurtes fossem de morango.” Já antes tínhamos ouvido histórias horríveis, como a da menina “assim, bonitinha, que matou a filha”, ou como a história dos caldos Knorr, ou como a da Nossa Senhora de Fátima. Todavia, nenhuma mais bonita (“bonita” e “horrível”, que não são adjetivos que aqui se oponham) do que essa dos iogurtes, que depois vai desembocar no melro dourado. Há também a história de Pango, o mais doce de todos, o que afinal bateu mesmo à porta, “com a pouca educação que o meu pai me deu”. E aquele que era “teimoso, mas asseadinho?”, esse russo, sempre sem eira nem beira, perdido por lá, como que vindo de um filme de Nicholas Ray? Vanda, vai-me demorar mais tempo a amar, mas como dizer “não” a quem a todos diz “sim”, àquela que tem os mais belos planos do filme e, sempre ou quase sempre, a lista das páginas amarelas ao colo, tão incandescente quanto a da luz das “chinesas” no escuro, quanto a da prata que há por todas as gavetas, pontuação luminosíssima do filme?

Aqui obrigo-me a repetir-me. É nessa lista – único livro do filme – que Vanda guarda a droga. É uma lista sórdida, com uma presença obscena, na sua imensa fealdade, mas é simultaneamente (e não me perguntem o porquê) o livro de horas, o texto sagrado, Antigo e Novo Testamento de uma revelação por haver. É nela que os extremos se tocam, ou são tangíveis os extremos, se, como os limites, os houver.

Por que Vanda, que quase nunca sai do quarto [mas sai para aquele plano com os arbustos, o que mais ecoa O sangue (1989) de outrora], que quase nunca sai da cama, não é uma personagem extrema?

Prestem toda a atenção ao diálogo dela com Pango. Para o doce Pango, aquela vida “é a vida que a gente é obrigada a ter. Parece que é já um destino, é um traço”. Mas Vanda pergunta-lhe – “Achas?” – e repete o que começara por afirmar: “É a vida que a gente quer, acho eu”. No plano seguinte, o mandarim está nas mãos do russo. Vanda já saiu, porque depois de ouvir a confissão de Pango, que saiu de casa para não fazer mais mal à mãe, “não aguentou ouvir mais nada”. Nesse momento, e apenas nesse momento, foi ela quem marcou o limite, o extremo. E, se nos cemitérios ecológicos se proíbem flores que não sejam artificiais (e o plano do cemitério de Carnide é o único plano não filmado nas Fontainhas), no túmulo que o quarto de Vanda também é, ficam as flores que os cemitérios não recebem, as flores que se levam aos vivos e se levam dos mortos. Essas flores fundem-se com as páginas amarelas (ou com a outra lista, azul, que jamais é aberta) na mesma liturgia “fantomática” e sensual.

Perdi-me no tempo, como o filme também se perde, ao vagar da sua alucinante montagem. No entanto, não me queria perder no espaço, prometi que falaria dos interiores e exteriores, do dentro e do fora.

 Reparem naqueles planos da venda das couves. Quem é que está dentro, quem é que está fora? “Dona, quer alface ou couve?” Estamos na casa, ou fora da casa, como em tantas outras situações? Nunca se sabe bem. Porque todas as casas tombam e já são ou resto delas ou não elas, porque as ruas do bairro casas são também, porque as pessoas já não se abrigam e num canto qualquer se injetam ou procuram as veias do pescoço, como quando nenhuma outra veia existe já furável, nesse plano que tem a sacralidade de um ecce homo. Há casas que se tapam com tabiques de várias cores, outras que são comidas por uma escavadora amarela, que parece um bicho pré-histórico e, quando acaba, fica “de olho vidrado” a olhar o que já consumiu. Casas há que se fecham todas para o ritual da droga, mas lá dentro bruxuleiam as luzes mais exteriores. E quem se abriga sai do abrigo como nele entrou, enquanto a própria ideia do “dentro” deixa de fazer sentido, a não ser, sempre, sempre, no quarto de Vanda, ilha cercada de fora por todos os lados, esburacada pelas “bombas”.

Do exterior, só temos a certeza no plano final, em que um resto de casa parece um capitel perdido de coluna grega, ou num plano – de todos o mais “inadjetivável” – em que, escurecida toda a imagem, um vulto ascende ao alto de um montículo, como se um plano de Murnau viesse anoutar (isso se diz?) o precedente grande plano “esfumado” de Vanda e o plano seguinte, em que lhe começamos por ver a orelha e em que o rosto dela tem o rigor dos Cristos de Mantegna ou a dissolução dos Cristos de Holbein.

Mas é dentro ou fora que está o nº 181, do espaço junto ao qual se compram colheres de prata por 150 escudos? Mas foi dentro ou fora que Vanda e Zita tiveram uma “infância fixe”? Mas é dentro ou fora que há aquele plano das florzinhas amarelas e do jornal velho, perdido de azul? Mas é dentro ou fora que os espaços se marcam com cruzes amarelas, como as casas dos pestíferos, noutras idades médias, ou como as casas dos judeus, noutras idades novas? Qual é o espaço das lontras no écran da televisão ou qual é o espaço da mãe, no outro canto do plano?

Volto ao texto antigo de Pedro Costa: “O Tempo e o Espaço, tão saturados, tão cheios de vazio e de tudo, entram em guerra”. E a salvação ou perdição da imagem visual avolumam-se a uma dimensão ainda mais insuportável na imagem sonora e no ruído mais cavo da escavadora final. Até o écran ficar todo negro e se ouvir, como do além, a música de György Kurtág.

Do quarto da Vanda não se sai mais. Como já disse: o século XXI foi aberto com No quarto da Vanda. “Não há remédio: não podemos deixar de ver”. “Jamais poderemos deixar de ver”.


João Bénard da Costa

(Publicado originalmente nas Folhas da Cinemateca, em abril de 2001, e no livro Cem mil cigarros – Os filmes de Pedro Costa. Retirado do catálogo “O Cinema de Pedro Costa”, retirado de 
http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO1/benard-vanda.htm)

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