sábado, 20 de junho de 2015

O ÚLTIMO GRANDE HERÓI

(John McTiernan, Last Action Hero, 1993)

O Último Grande Herói foi um fracasso de público. Ainda que seja uma comédia na maior parte do tempo, o filme traz o ocaso no título, e explora o sentimento que daí surge sem medo de transformar-se em lamúria. Nos anos 90, seu parentesco mais próximo estaria em um filme como Rápida e Mortal, de Sam Raimi: um mesmo gosto pelo pastiche, um mesmo acento lúdico, um mesmo fermento maneirista, uma mesma inspiração no cartoon. Em Raimi, contudo, prevalece o jogo, a brincadeira com as formas, a pesquisa sobre novas “tecnologias” da decupagem e da excitação visual. McTiernan também realiza seqüências de ação incríveis, trabalha cada mínimo detalhe do gestual e do visual dos personagens, aproveita as chances dadas pelo volume simbólico e iconográfico que a consciência sobre o cinema de gênero permite, mas o olhar do personagem de Schwarzenegger quando avista o cartaz de “Jack Slater IV” e se descobre um mero produto da imaginação é algo que jamais figuraria em Rápida e Mortal. O Último Grande Herói tem esse assombro de ter chegado após o fim de uma era. Se por um lado McTiernan não perde a piada (as piscadas de olho são infinitas, variando do sutil ao explícito), por outro há um cenário em penumbra, algo que constata uma tristeza. O mais buddy movie dos filmes de McTiernan, o mais engraçado, o mais ambicioso, o mais auto-reflexivo é também seu mais melancólico. E sua obra-prima.
Os signos de crepúsculo estão em cada detalhe. A começar pelo cinema onde o menino Danny assiste à saga de Jack Slater (Schwarzenegger): uma sala de arquitetura antiga e mal conservada, descascada pelo tempo. Nick, o velho projecionista, é um sobrevivente do antigo espaço de fruição dos filmes (o cinema de rua, o espetáculo lotado), alguém cujo tempo de vida praticamente equivale à idade do cinema. No começo do filme ele dorme na sala de projeção, que herdou de seu pai, enquanto Danny assiste sozinho a “Jack Slater III”. Em um cinema fantasmagórico, um filme de gênero feito em moldes anacrônicos é projetado, sendo visto pela sexta vez por um espectador pré-adolescente vidrado em tudo que acontece na tela, antecipando cada fala ou ação. A quadra de Nova York em que essa sala de cinema se localiza, por sua vez, parece em si mesma um museu da cinefilia, uma calçada por onde a Morte (egressa diretamente de O Sétimo Selo) circula.
Nick diz que o bilhete dourado que entrega a Danny, antes da sessão prévia de “Jack Slater IV”, foi um presente de Harry Houdini (há inclusive um pôster dele na sala de projeção), quando este se apresentou ali naquela sala de cinema, muitos anos antes de Danny sequer sonhar em nascer. Segundo o famoso ilusionista, aquele bilhete seria a porta de entrada para um mundo mágico. Houdini representava um dos baluartes da efervescente cultura dos espetáculos do corpo no início do século XX, um ideal heróico de talento físico. A princípio inspirado pelo espiritualismo, ele posteriormente negou-o em favor de apresentações onde o corpo real era colocado no centro de significação do espetáculo: a ilusão se distanciava do espírito da ficção, queria se passar por verdade corpórea. Houdini chegou a tentar carreira no cinema, aparecendo em uma meia-dúzia de filmes, mas não deu certo e acabou se voltando – de forma semelhante à sua relação com o espiritualismo – contra o cinema, valorizando a performance ao vivo, a presença física do showman. Mas era o corpo cinemático, naquele momento, que já triunfava sobre o corpo real: basta citar que os espetáculos de vaudeville primeiro passavam filmes como adendos aos espetáculos ao vivo, antes destes começarem, porém rapidamente as performances ao vivo se tornaram mero entretenimento auxiliar para as grandes atrações, isto é, os filmes que eram depois projetados.
Esse espetáculo americano do corpo, em que Houdini se destacou, seria reencontrado no cinema de aventura, nas potencialidades do herói de ação, e na comédia física, nas acrobacias do herói burlesco, elementos que parecem comentados de alguma maneira em O Último Grande Herói. Da mesma forma que as performances físicas de Houdini foram superadas pelo lugar imaginário da ficção cinematográfica, o herói feito de músculos e frases de efeito interpretado por Schwarzenegger tinha também seus anos de glória chegando ao fim em 1993. Vindo acompanhada de todo um novo regime de imagem, velocidade, narrativa, ficção etc, a maleabilidade do corpo digital tornava démodé aquela truculência toda, como o próprio Schwarzenegger havia experimentado um pouco antes, deparando-se com o metal líquido do T-1000 em O Exterminador do Futuro 2. Mais ainda: o cinema de gênero em si, fosse seu herói uma massa orgânica ou um corpo-elástico confeccionado em CGI, estava em crise com seus códigos. Era como se o pacto de adesão às inverossimilhanças do mundo ficcional, suas leis e arbitrariedades próprias, estivesse em suspenso, em renegociação (um novo design e uma nova estratégia narrativa se teceriam mais tarde, hoje sabemos). Como mostra uma das cenas mais divertidas do filme, a crise é hamletiana: "ser ou não ser".
Mais do que um cinéfilo, Danny é um cine-filho, alguém que se deixa adotar pelos filmes, um exemplo limite de espectador de cinema – uma dedicação à sala escura que já existia em outras épocas, remotas até. Ao mesmo tempo, ele representa um extremo da história da espectatorialidade: um olhar que reconhece todas as convenções, os códigos, os truques, as técnicas. Danny possui uma excessiva consciência em relação ao universo ficcional, à lógica interna de um filme, é um espectador nascido após o fim da inocência. Nick, ao contrário, pertence a uma outra época. Ele se surpreende quando Danny diz que o bilhete mágico de fato funciona. “Eu poderia ter feito uma visita à Greta Garbo”, arrepende-se. Acontece que na época em que Nick era um cinéfilo como Danny, ninguém ousaria transpor essa barreira, ninguém admitiria a hipótese de passar para o outro lado da representação. Danny é um espectador da era dos parques temáticos, da visita aos estúdios da Universal como modelo de entretenimento. Visitar os cenários dos filmes, o lugar onde são feitos, conhecer os bastidores, ver de perto a maquinaria do cinema, isso ameaçava substituir, no imaginário das novas gerações, o próprio encontro com o filme, esse grande outro que perdia seu espaço para a constatação do mesmo – pois o local de fabricação dos filmes pertence ao mesmo mundo do espectador, é uma realidade como outra qualquer. Já os filmes em si, estes vão sempre preservar uma qualidade de outro; o mundo do filme e o mundo do espectador nunca serão o mesmo, nem se esforçando muito para isso. Haverá sempre uma separação que está na base do espetáculo e da ontologia do cinema (o coeficiente de semelhança entre o mundo representado na tela e o mundo real não altera essa evidência primeira, de que entre o espectador e o filme se desenvolve uma relação de "um" com o "outro"). O Último Grande Herói é um filme sobre o novo estatuto dessa fronteira. Danny atravessa a tela e cai no mundo do filme a que assistia, sendo integrado à diegese. Ele agora é ator e espectador do cinema, vai para o mundo em que os bad guys nunca vencem no final. O filme é um pouco uma versão de A Fantástica Fábrica de Chocolate voltada mais explicitamente para o universo cinematográfico. O último grande herói não é apenas Jack Slater: é também Danny, é também Nick, pessoas que resguardam um tipo de relação com o cinema em vias de desaparecer. É também John McTiernan.


 Luiz Carlos Oliveira Jr.
(Texto originalmente publicado em http://www.contracampo.com.br/)

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