sexta-feira, 31 de julho de 2015

I VITELLONI / 1953


(Os Inúteis)

Toda a obra de Fellini é uma autobiografia. Fellini como “objecto” e “matéria” de filmes não se limita a uma rememoração de experiências e confissões. O autor expõe-se também nas suas rêveries, obsessões e nos caminhos não percorridos, no desejo de ser outro, e na confluência de outros destinos com o seu, onde projecta uma faceta grotesca. Mas esta biografia sonhada e sublimada, de que a psicanálise é um dos instrumentos de leitura, só se manifesta a partir de La Dolce Vitta e se afirma definitivamente com Otto e Mezzo. Até essa ruptura linguística e temática, a sua matéria é não o sonho mas a experiência pessoal, não sem que se detectem já os sinais do “outro” Fellini, pelo papel atribuído à função onírica já fundamental no final de I Vitelloni constrói-se de forma semelhante, na que permanece ainda hoje como uma das mais belas sequências do realizador: Moraldo (Franco Interlenghi) abandonando a terra natal no combóio, cujo movimento é montado paralelamente com uma série de travellings para trás sobre os seus companheiros adormecidos, um movimento que é tanto símbolo de ruptura com o passado da sua parte, como, no sentido inverso, projecção dos desejos não materializados de evasão dos companheiros. Ainda de forma “realista” Fellini lança as bases do seu cinema a partir dos anos 60. E o personagem desencantado de Moraldo forma com o Marcello de La Dolce Vitta e o Guido de Otto e Mezzo um corpo único onde Fellini se “retrata” a si próprio. Numa carta a Angelo Solmi, Fellini dá conta do que I Vitelloni tem de autobiográfico, com a sua terra natal de Rimini servindo de modelo para a cidadezinha de província onde os vitelloni passeiam a sua mediocridade e embalam sonhos que não materializarão (será preciso o reconhecimento internacional e vários óscares para Fellini, para que os seus conterrâneos lhe perdoem o facto de não ter feito o filme em Rimini). E se é Moraldo o personagem com mais traços autobiográficos, também os outros, como diz Fellini na referida carta, projectam algo de si, embora inspirados em amigos de infância. Para um dos personagens irá buscar o seu próprio irmão, Riccardo Fellini. Em I Vitelloni Fellini “imagina” o que poderia ser o futuro de todos eles.

Cinco homens, Fausto, Ricardo, Leopoldo, Alberto e Moraldo, formam esse grupo de vitelloni, gente desocupada, que arrasta uma apagada e triste existência entre o usufruto do imediato e projectos que nunca chegam a concretizar, vivendo à custa dos familiares, imaturos e fugindo às responsabilidades. Não deixa de ser interessante verificar que os personagens têm o nome dos actores que os interpretam, excepto o primeiro e o último, que são também aqueles a que o realizador dá mais atenção, Fausto como uma espécie de personagem central dos vários episódios do filme, Moraldo numa função de testemunha. Se na intriga ele é o mais apagado (à excepção das belíssimas sequências com o garoto ferroviário), está, porém, presente ao longo de todo o filme, vendo, observando, testemunhando a mediocridade do meio e daquela vida. A sua fuga não é um acto reflectido: é como a água que transborda de vaso. Atinge o limite do suportável e desaparece sem objectivo. O jovem ferroviário (única testemunha da sua partida) pergunta-lhe: “Onde vais?” e Moraldo responde: “Não sei. Vou-me embora” “Mas o que vais fazer?”, “Não sei. Preciso de partir. Vou-me simplesmente embora”. A que se segue um olhar constrangido sobre a cidade que a pouco e pouco vai desaparecendo com a montagem paralela atrás referida. Cada episódio são gotas de água que vão fazer extravasar o cálice de Moraldo, sendo o definitivo a tragi-comédia da busca da mulher de Fausto (irmã de Moraldo). É Fausto o mais triste destes tristes heróis, sem sentido de moral, procurando seduzir a mulher do patrão, tentando vender uma estátua roubada, numa antecipação dos pobres diabos sem moral de Il Bidone. Se há redenção para os personagens de Fellini, é Moraldo quem a representa neste filme. Mas apenas a esperança da partida, deixando o resto em suspenso. Se a sorte lhe sorrir poderá ser um jornalista (Marcello, em La Dolce Vitta) ou um realizador de cinema (Guido, em Otto e Mezzo). Fausto, o mais arrogante e ousado (O que mais sonha com a partida da cidade, procurando aliciar Moraldo. Mas tal gesto não era mais do que uma fuga às responsabilidades por ter engravidado Sandra), revelar-se-á o mais fraco. Alberto será o primeiro a afirmá-lo. Moraldo tem há muito consciência disso, mas recusa-se a admiti-lo, e só no final, com relutância, lhe lança o epíteto de cobarde à cara. Para Alberto ficará a mais patética das sequências: a do travesti, após a noite de carnaval, qual marioneta desarticulada e abandonada no meio da rua, verdadeira premonição de um futuro sem horizontes.

Em I Vitelloni já está todo o Fellini. O trabalho da memória obsessivamente retomado, os personagens procurando o caminho entre o desespero e a graça. E uma forma de mostrar que transcende os limites do “neo-realismo”, com as imagens rigorosamente trabalhadas (a disposição dos personagens na profundidade de campo nas sequências do cais, da praia e as suas deambulações nocturnas pelas ruas), uma fotografia que sublinha o recorte psicológico. 

Que I Vitelloni se tenha tornado uma das obras mais citadas de Fellini, e um verdadeiro filme-culto, não causa espanto. Não é apenas a memória de Fellini que nele se manifesta, mas a de toda uma geração. I Vitelloni representa para a que viveu esse início da década de 50 o mesmo que The Big Chill (Os Amigos de Alex), de Lawrence Kasdan, representa para a geração de 60.

Manuel Cintra Ferreira

(Folhas da Cinemateca Portuguesa)

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