terça-feira, 18 de agosto de 2015

Carpenter vs. Hawks


O que primeiro chama a atenção em um filme de John Carpenter é a fluidez de sua narrativa, a precisão da sua composição de imagem e a fé num cinema antiliterário que se coloca diante de seu público simplesmente como imagem em movimento. Isto tudo ele foi buscar numa tradição de cinema americano praticado por Don Siegel, Samuel Fuller e, sobretudo, Howard Hawks. Um cinema cada vez mais incomum de se ver em qualquer lugar ("eu nasci com o timing errado", reclama um personagem em Assalto à 13 DP).
É Howard Hawks em especial que acabará servindo de inspiração para a obra que Carpenter vem desenvolvendo desde meados dos anos 70. Dele vem muito do estilo (a famosa direção invisível) e alguns dos temas que Carpenter retoma ao longo de seus filmes. Um mestre tanto nos filmes de aventura (Hatari), screwball comedies (Levada da Breca), faroestes (Rio Vermelho) ou policiais (Scarface), Hawks talvez seja o único cineasta que trabalhou com sucesso em todos os gêneros que fazem parte da tradição do cinema americano.
Dentro de uma obra tão rica, onde os filmes dialogam de tal maneira uns com os outros que se torna difícil destacá-los individualmente, dois deles, Onde Começa o Inferno (59) e Hatari (62), talvez possam ser vistos como filmes-sintese. Será justamente Onde Começa o Inferno que Carpenter buscará com mais freqüência como ponto de partida para seus filmes. Neste faroeste o xerife John T. Chance (John Wayne) tem que defender a delegacia de um numeroso bando que tenta salvar um criminoso. Mesmo em desvantagem ele recusará ajuda, mas acabará recebendo-a do mesmo jeito. No fim, põe a amizade pelo alcoólatra Dude acima do emprego, e arrisca-se a perder o prisioneiro para salvar a vida do amigo.
Daí nasceriam duas das características que marcam toda a obra carpenteriana: uma ética da relação com o outro e a necessidade de um grupo de pessoas se unirem quando colocadas diante de uma adversidade. Ambas já se insinuavam em Dark Star, estréia amadora de Carpenter, e se mostram com força total já em Assalto à 13 DP (76). Carpenter situou sua homenagem assumida a Onde Começa o Inferno numa velha delegacia semidesativada (ela está sendo transferida para um novo local), onde um policial novato, que cresceu nas imediações, terá de defender um desconhecido homem catatônico de uma interminável gangue, com a ajuda de dois prisioneiros e uma secretária. Rodado num momento em que Hollywood ia abandonando de vez este cinema classicista e preparava-se para entrar na era da superprodução, o filme reflete este momento de forma crítica. Contemporâneo de outros filmes com objetivos semelhantes como O Ultimo Pistoleiro de Siegel, No Mundo do Cinema de Bogdanovich e um pouco depois, Fedora de Wilder, a diferença é que Carpenter dialoga com este momento fazendo um filme no espírito de Hawks -- direto e a primeira vista sem grandes preocupações.
Não é a toa que mais do que em qualquer outro de seus filmes, emAssalto à 13 DP as relações humanas se definem sempre através do olhar, mas também pela ação -- já que como num filme de Hawks, é o que os personagens fazem e não o que dizem (ou se diz sobre eles), que definem quem eles são. Será através de um olhar que o criminoso Napoleon Wilson primeiro desconfiará que há algo que diferencia Bishop dos outros policiais que ele conheceu, mas será pelas suas ações que Bishop confirmará isto, salvando por duas vezes os prisioneiros, que outros não se preocupariam em salvar. Também será através da ação que Wilson, de quem se repete sempre se tratar de um prisioneiro perigoso a caminho do corredor da morte, provará seu valor ao assumir em igualdade com Bishop a liderança e a responsabilidade dentro da delegacia sitiada. Por fim, será outra troca de olhares seguida de uma ação que Bishop ao recusar algemar Wilson e a convidá-lo a sair lado a lado com ele, como um igual, devolve à dignidade ao prisioneiro e agora amigo, um momento hawksiano que não deixa de ser carpeteriano.
Assalto também desenvolve outras duas características carpenterianas que me parecem ter surgido com Hawks. A primeira é a dos personagens postos à margem da sociedade, localizados numa delegacia desativada de uma região de Los Angeles tão abandonada pela polícia local que esta não consegue localizar onde está ocorrendo o tiroteio do qual receberam diversas chamadas. Hawks gostava de colocar seus personagens como expatriados (como esquecer a verdadeira legião estrangeira de Hatari?), fechados em grupos específicos (os pilotos de Faixa Vermelha 7000) ou simplesmente perdidos num mundo que não conhecem (Cary Grant em Levada da Breca). Carpenter, ele próprio umoutsider, parece compreender esta característica como ninguém, transformando-a num sentimento de deslocamento e principalmente numa idéia de que as personagens precisam se unir e agir pelo que defendem.
A outra é a conjugação de gêneros cinematográficos. Hawks é o diretor que fazendo um musical ou uma ficção científica/horror os transforma primeiro num filme de Howard Hawks (e já não era Onde Começa o Inferno, além de um faroeste, uma comédia, um romance e um drama sobre alcoolismo?). Carpenter na aparência acabou ligado a um nicho de filmes de horror e/ou ficção cientifica, mas basta uma olhada atenta a eles para se notar como ele trabalha diversos gêneros em um filme só. Assalto à 13 DP é um filme policial, mas tem elementos do faroeste e dos filmes de horror; o novo Fantasmas de Marte (que retrabalha e aprofunda a relação Wilson/Bishop) mistura ficção científica, horror, faroeste e filmes policiais.
O seu único remake oficial de um filme de Hawks (O Monstro do Ártico, na verdade apenas uma produção de Hawks, mas cheia de sua personalidade), O Enigma do Outro Mundo leva muito do que Carpenter absorveu das relações humanas de Onde Começa o Inferno para uma discussão que me parece nortear muito da filmografia posterior do diretor. A crescente dificuldade das pessoas em confiar uma nas outras, refletida nos doze homens às voltas com um alienígena imitador (este uma presença constante nos filmes seguintes do diretor). Um filme amargo, mas esperançoso, muito incômodo na forma como implica o espectador no que narra. Dois anos depois o mesmo alienígena imitador reapareceria emStarman, mas ao invés da destruição, assumiria o corpo de um homem morto e em sua trajetória finalizaria o que o homem havia deixado pendente.
Seria limitador reduzir a influencia de Hawks em Carpenter apenas aOnde Começa o Inferno (assim como é limitador ver a obra de Carpenter como uma mera releitura de Hawks). Mesmo Snake Plinsken de Fuga de Nova Iorque, à primeira vista o menos hawksiano dos personagens de Carpenter, não está muito distante do aviador durão feito por Cary Grant em O Paraíso Infernal que no fim chora a morte do amigo. Afinal, quando Snake é posto diante do presidente não é por si, mas pelos que morreram na tentativa de salvá-lo, que o anti-herói pergunta. A construção de uma obra coerente e de grande respeito pelo que é humano, talvez seja o grande legado de Hawks a Carpenter.

Filipe Furtado
(Texto original: 
http://www.contracampo.com.br/35/carpenterhawks.htm)

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