sábado, 17 de outubro de 2015

Entrevista com Roberto Rossellini

(Realizada por Fereydoun Hoveyda e Jacques Rivette)                                                               
Sabe-se que de sua viagem à Índia, Rossellini trouxe dois tipos de filmagens; uma em 16mm fornece hoje o suporte de um programa de televisão, “Fiz uma bela viagem”. A outra, em35 mm, estava reservada a um longa-metragem intitulado provisoriamente Índia 58. Nem a montagem nem a sonorização estão totalmente terminadas. Mas, cedendo à nossa impaciência, Rossellini convidou a equipe do Cahiers para assistir à projeção de uma cópia de trabalho.Foi o documentário para a TV que você rodou primeiro?
                Sim, para mim, esta foi a preparação do filme, a possibilidade de me aproximar da Índia. Procurei primeiro observar, fazer uma simples reportagem, sem tomar nenhum partido, sem mesmo a intenção de chegar a uma forma cinematográfica particular. No filme, pelo contrário, a matéria é dramaticamente elaborada. O que tentei exprimir aqui foi o sentimento que me proporcionou a Índia, o calor interior das pessoas de lá. Tentei, se posso dizer isso sem cair no ridículo, transmitir poeticamente minhas sensações de repórter.

A natureza na cidade
Foi por isto que você suprimiu no filme todo sketch que teria relação com as cidades?
               
Sim e não. Eu tinha concebido um número muito maior de episódios, e filmei o que pude. Eu tive de fazer uma escolha, me limitar aos aspectos mais particulares e que me permitissem ir mais a fundo no conhecimento da Índia. Os episódios que me pareciam um pouco mais explicativos ou técnicos foram abandonados.

 Por que os animais possuem no filme uma tamanha importância?
               
Porque de fato eles têm importância na Índia. O que me chocou ao voltar foi a total ausência da natureza em nosso mundo. Lá, o homem está sempre em contato com a natureza. É muito importante isto: mesmo um homem muito moderno, como é o indiano, vive em contato com a natureza precisamente todo o tempo. Esta presença da natureza você observa até mesmo nas cidades. Inútil ir até o campo; a natureza está na cidade. Aqui, a natureza não existe mais. Mesmo o campo não é mais a natureza. As árvores do Bois de Boulogne são árvores, é certo, mas não são a natureza.
Foi, portanto, uma coisa pensada você começar por uma sequência documentária sobre as cidades e acabar pela natureza?
               
Sim. Começo pelo documentário, porque é desta realidade que eu parto para penetrar no interior das coisas. Se tivesse filmado todos os episódios que tinha em mente, teria dado um filme muito longo. Felizmente, encontrei dificuldades de todo tipo: clima, além das dis tâncias. Um deslocamento levava quinze dias. O material estragava. Com o calor, a película grudava, e era preciso passarmos de uma câmara de ar-condicionado à outra.

A viúva, a reforma agrária e o silêncio
Que critérios usou na eliminação de certos sketches?
               
Comecei por aqueles que considerava mais urgentes, aqueles sobre os quais eu não podia ter dúvida, para ser liberado em seguida. E eliminei aqueles que poderiam ser considerados mais técnicos, mais explicativos, menos – não sei, me irrita usar esta palavra – poéticos. Há três episódios que pus deliberadamente de lado. Primeiro, uma história onde deviam se opor a Índia moderna e a antiga. Tratava-se da viúva de um homem que havia montado um vasto empreendimento industrial. Ela tinha sido infeliz a vida inteira, pois seu marido só se interessava pela fábrica. Mas quando ele morreu, o irmão dele quis vender a fábrica e “dar no pé”. A viúva se recusa. Era uma espécie de traição para com seu marido. Ela sacrifica suas jóias e tudo o que possui para comprar a parte do cunhado e continuar com a fábrica, mesmo sabendo que está tudo perdido de antemão, que vai à falência. Mesmo assim, ela o faz, porque é um signo, uma prova de fidelidade. Se suprimi este episódio é porque ele me pareceu menos puramente indiano que os outros. Poderia se passar em qualquer país – e no entanto, a importância da família é algo bem indiano.
                O segundo episódio mostrava “community projects”, estes projetos do Estado cujo fim era o desenvolvimento das cidades, a reforma da agricultura, etc. É uma das coisas mais curiosas da Índia: mandam para as cidades pessoas com conhecimento profundo da agricultura, mas não para darem uma lição aos outros, e sim como servidores, para estarem à disposição das cidades, caso elas precisem deles. Desta forma, obtiveram resultados extraordinários. É muito interessante, mas tive de renunciar a este episódio porque ele era mais importante politicamente do que poeticamente, e o sketch da barragem já exprimia suficientemente a mesma ideia.               
               
Quanto ao terceiro episódio, era uma espécie de fábula; ele se passava numa cidade de montanha, onde dois ou três ermitões tinham se retirado para viver uma vida de contemplação. Lá reinava, face às imensas montanhas, um silêncio extraordinário. E subitamente, vem um ruído. Caminhões passam a percorrer a estrada que atravessava a cidade. Cem quilômetros adiante começaram a construir uma barragem ou coisa assim. Os dois ou três ermitões querem partir. Mas a cidade, que tirava certos benefícios do progresso (estava repleta de pequenos artesãos, de tecelões que ganhavam mais vendendo coca-cola ou gasolina), para conservar os eremitas, decide construir um desvio... E aí era necessário reconstituir o silêncio, e quando perdemos o sentido do silêncio, sua reconstituição é uma coisa complicada. As portas, as janelas, as menores coisas, tudo isto fazia barulho. A reconquista do silêncio devia ser um processo longo e paciente. Era divertido – não é? –, mas um pouco “fabricado” demais. Tratava-se, em suma, de um apólogo, uma fábula. E em meu filme não me interessava fazer apólogos.

A contemporaneidade da História
Todos os seus sketches, no entanto, possuem uma dimensão de fábula.
               
Talvez, mas são, antes de tudo, fatos reais que filmei enquanto tais. Não é coisa pra se tirar uma moral. São fatos que estão lá, e que explicam o que são o homem, os homens, a natureza, etc. O sketch que contei agora comportava uma moral, e isso me incomodava.

A ideia do ruído se reencontra na história do tigre, onde a chegada de uma central elétrica rompe a harmonia da natureza.
               
Sim, mas o episódio do tigre possui a vantagem de ser extremamente mais simples. Aqui, temos realmente o homem e a natureza. O equilíbrio da natureza se rompe, portanto, alguma coisa está chegando. O outro sketch era um pouco mais elaborado: ele saía da linha geral de Índia 58.
               
Na Índia, saibam vocês, a natureza é uma força tão evidente, tão poderosamente evidente! Eu tentei desfazer a lenda e olhar as coisas em sua realidade. Por exemplo: o amestrador de macacos morre porque há uma tempestade de calor. É um fato meteorológico: ele é dotado de um tal poder que exerce uma influência sobre os homens, se torna dramático. Eu fui para lá com a firme intenção de evitar os lugares-comuns: dentre estes lugares-comuns, há os tigres, os elefantes, as cobras, etc. Mas estes lugares- comuns nascem sempre de uma realidade. Portanto, é melhor olhar para esta realidade tal e qual ela se mostra. E o que – como disse nos programas da televisão – é marcante da Índia é a contemporaneidade da História. Estamos mergulhados lá em uma humanidade totalmente primitiva e, ao mesmo tempo, nos tempos modernos. As etapas de todos os períodos históricos estão lá, sob nossos olhos, absolutamente no mesmo plano. Eis aí, me parece, o aspecto mais marcante da Índia.
Você não tinha em mente ainda um outro episódio: a história de uma mulher, chefe de um bando de salteadores?
               
Esta ideia eu abandonei em seguida, porque me veio à cabeça na Europa, lendo os jornais. Era um truque para um certo tipo de imprensa sensacionalista. Não havia nada a tirar daí.

E esta história de um homem muito rico que decide abandonar todos os seus bens e partir pela estrada como mendigo?
               
Não era um sketch propriamente; eu sabia que este tipo de coisa acontece com frequência na Índia, mas não passava de uma ideia geral: não construí nada em cima disso.

A Índia lhe pareceu muito diferente do que pensava?
               
Sim, a Índia é profundamente diferente. Quero dizer que, superficialmente, o seu aspecto se parece muito com o que vocês imaginavam; mas, profundamente, não. Por exemplo, fala-se muito do misticismo indiano, e é um fato que os indianos são místicos, ou seja, dão uma grande importância à vida metafísica. Mas é um fato também que eles são extremamente realistas, extremamente concretos. Eles possuem um espírito muito cartesiano e são ao mesmo tempo materialistas.

A impressão de um mundo
E por que as Índias? Pensava nisso há muito tempo?
               
Se pensei nas Índias, foi porque este país ganhou recentemente uma grande luta através de meios muito modestos. A não-violência, simples ponto de partida, se tornou, em seguida, um instrumento extremamente efetivo. Claro, a atitude dos trabalhistas ingleses conta muito nesta vitória, mas é um fato não menos certo que a luta lá foi conduzida segundo métodos totalmente não-usuais para nós. Nós, pelo contrário, sendo absolutamente intolerantes como somos, temos sempre de afirmar nossos desejos ou sonhos na porrada, porque não encontramos o tempo de deixar os outros serem persuadidos, aceitos, ou se aproximarem de forma racional, etc. Foi isto, antes de tudo, que me atraiu nas Índias.
Por que, neste caso, não construiu uma história única e se limitou a aspectos particulares?
               
Sim, estes aspectos são particulares, fragmentários, mas a Índia é algo de tão complexo que, se você não a tocar um pouco por aqui, um pouco ali – sob um conjunto de aparências que são, aliás, muito diferentes entre si –, você não vai conseguir tirar nada. Construir uma história única seria construir alguma coisa muito falsa. Não acham?
Em suma, você retoma o espírito de Paisá. Índia marcaria, portanto, uma ruptura com os filmes precedentes?      
               
Quando você prossegue numa determinada direção, você perde a curiosidade, o entusiasmo. Você se liga a outras coisas. No final das contas, nunca deixei de ir atrás do homem, do indivíduo. Depois, alguns de meus últimos filmes eram muito autobiográficos. Eram apólogos para mim mesmo – se não compreendi isso no momento em que os fiz, hoje ao menos penso compreendê-lo. Depois, senti necessidade de buscar novas fontes, me renovar, já que senti que tinha perdido o ponto. Encontrei estas fontes na Índia. O que eu queria saber era se, ao ver o filme – com abstração das anedotas –, as pessoas teriam a sensação de ver um mundo ou não. Tentei antes de tudo dar esta impressão. Pouco importa o método com o qual tentei atingir este fim. Este fim é a única coisa que conta, e cabe a vocês, ao público julgar se era algo urgente a necessidade de mostrar este mundo ou não. Em Viagem à Itália, era necessário jogar com uma certa atmosfera. O importante não era tanto a descoberta de um país, mas sua influência dramática sobre dois personagens. Era o terceiro elemento: de um lado um casal, do outro a Itália. Em Índia, o dado básico não está em um conflito. É importante que o espectador saia do filme com a impressão semelhante à minha.

Porque colocou o episódio do macaco por último? É o mais dramático?
                É difícil de dizer, porque tudo se funda sobre os sentimentos. Creio que neste momento os sentimentos se tornaram não apenas mais sutis como também mais vívi
dos, mais ardentes. Não coloquei este episódio no final do filme porque era o mais dramático, mas porque figura a perfeita regra da natureza. Os abutres esperam, mas eles não vão comer o homem, porque ele não está morto. É preciso esperar pelo decreto da morte. É preciso que seja, de qualquer maneira, legalizada a morte do homem para que os abutres – que são parte da natureza – se mexam e venham cumprir sua função de natureza. Isto já é algo extraordinário. Então, com seu mestre morto, o pobre macaco – que não é mais um macaco, mas também não é um homem – experimenta a necessidade de ir em busca ao mesmo tempo dos homens e dos macacos, de voltar para trás e ir adiante. Eis aí o drama que é o de todos nós. É a luta na qual estamos empenhados.
Sentimos durante a projeção do filme a intenção de reduzir a história e a interpretação ao essencial. Trata-se de uma tomada de posição (parti pris)?
               
Sim, e até mesmo mais que uma tomada de posição. Um esforço contínuo. Em seu artigo sobre Viagem a Itália, Rivette me comparou a Matisse. Isto me marcou muito, e posso dizer hoje que sou consciente deste despojamento. Despojamento que representa para mim um novo esforço, mas, quando consigo atingi-lo, é uma alegria sem limites.

A montagem me incomoda
Em sua entrevista com Renoir e Bazin, publicada pela France Observateur, você falou mal da montagem.
               
Sim, a montagem não é mais essencial. As coisas estão aí – e sobretudo neste filme –, por que manipulá-las? As pessoas que fazem cinema acreditam que ele é sempre um pouco como um milagre. Vai-se a uma projeção e vê-se alguma coisa numa tela, é espantoso. E aí compreendemos um texto dito por atores. É ainda mais espantoso. O procedimento técnico sempre suscita admiração: a mim não, mas a muita gente. Bem, a mesma coisa com a montagem. A montagem é um pouco como o chapéu do mágico. Coloca-se lá dentro todas estas técnicas, aí se tira um pombo, um buquê de flores, uma garrafa d’água... mexe-se um pouco, retira-se de novo um pombo, uma garrafa d’água, etc... A montagem, pelo menos entendida desta forma, é algo que me incomoda e acredito que não seja mais necessária. Quero dizer a montagem em seu sentido clássico, aquela que se aprende como uma arte na IDHEC. Ela era provavelmente essencial no cinema mudo. Um filme de Stroheim não existiria sem a montagem. Stroheim experimentava dez soluções para ver qual delas era a mais eficaz. Era uma questão de reconstituir uma linguagem própria para o cinema, uma linguagem no sentido do veículo, não uma linguagem poética.
               
Hoje, isto não é mais necessário. É claro que há no meu filme um quê de “montagem”; trata-se de uma questão de boa utilização dos elementos, mas não de linguagem.
Nos tempos do cinema mudo, o que se filmava tinha pouca realidade em si. Reencontrava-se a realidade por intermédio da interpretação da montagem.
               
E depois tem também este fator importante, que a câmera se tornou hoje absolutamente móvel. Nos tempos do cinema mudo, ela era completamente imóvel. Fazer travellings era, no começo, considerado um empreendimento insensato.
Sua montagem não obedece, portanto, a nenhuma ideia preconcebida?
               
Nenhuma. Não premedito nada. O que eu devo dispor em particular é de uma certa rapidez de observação, e eu me fundo sobre as coisas que vejo. Sei sempre que se o olho é levado a ver certas coisas, são estas coisas que são válidas. Não filosofo “em cima”... Não, realmente não aspiro a uma montagem tradicional.
                Pego as coisas sempre em movimento. E estou me lixando completamente de chegar ou não ao fim do movimento para “raccordar” ( juntar, estabelecer uma ligação entre planos) com o plano seguinte. Quando já mostrei o essencial, eu corto: basta isto. É muito mais importante “raccordar” o que está na imagem. Se olharem minha montagem com olhos de cineasta, compreendo bem que ela possa incomodar, mas creio que não é nada necessário olhá-la com olhos de cineasta.

A imagem e a ideia
André Bazin desconfiava dos truques que repousavam sobre a montagem. Seria preciso, dizia ele, mostrar o homem e o tigre no mesmo plano. O seu filme os mostra separadamente.
               
Se quisermos tornar a história mais crível, logicamente é melhor mostrá-los no mesmo plano. Mas se ela é crível por outros meios, eu não vejo o porquê da necessidade de se usar uma técnica particular. Tudo depende do que se quer fazer. Não quero dar um espetáculo. Bazin, de seu ponto de vista, tinha razão. Se o objetivo é criar uma sensação, a sensação, é claro, é bem mais forte se mostramos o tigre e o homem ao mesmo tempo. Mas minha história não tem necessidade de suscitar fortes sensações. Vocês se lembram como o episódio começa: um longo travelling na floresta, durante o qual ouvimos o canto de amor dos tigres. Talvez não fosse necessário sequer mostrar os tigres. Eu os mostro pra sublinhar um pouco a coisa.
               
Eu não calculo. Eu sei o que quero dizer e encontro o meio mais direto para dizê-lo. Isso é tudo, eu não quebro muito a cabeça. Se está dito, pouco me importa a forma como foi dito. Vocês me dizem que meu filme dá a impressão de escolhas feitas de antemão. Não, as coisas não são “escolhidas”, mas as ideias são seguras. Uma certa escolha, sem dúvida, já foi feita, mas sobre a ideia. O importante são as ideias, não as imagens. Basta termos ideias bem claras e encontramos a imagem mais direta para exprimir uma ideia.
Este é mesmo o seu credo de cineasta.      
               
Sim, as ideias. Há mil outras formas de exprimi-las que não pelo cinema; escrevendo, por exemplo, se eu fosse escritor. A única coisa que um filme possui a mais é a possibilidade de colocar em um único fotograma dez coisas ao mesmo tempo. Não é necessário ser analítico no cinema – sendo, ao mesmo tempo, analítico.

Os verdadeiros problemas
Você pode colocar a questão de forma inversa à abordada há pouco? Por que não um simples documentário, como em Robert Flaherty?
               
O que me importava era o homem. Eu tentei exprimir a alma, a luz que brilha no interior destes homens, sua realidade que é absolutamente íntima, única, referente a um indivíduo que se relaciona com o sentido de todas as coisas ao seu redor. Pois as coisas ao redor possuem um sentido, já que há alguém que as contempla – ou, ao menos, este sentido se torna único pelo fato de haver alguém que o contemple: o herói de cada episódio, que é ao mesmo tempo o narrador. Se eu tivesse feito um documentário estrito, eu teria abandonado o que se passava no interior destes homens, em seu coração. Até porque, para levar o documentário a um nível mais profundo, creio que seria preciso olhar para o interior destes homens.
É, enfim, uma retomada dos primórdios do neorrealismo?
               
Sim, é isso.

Mas podemos perguntar uma segunda vez: por que a Índia? O que você fez na Índia poderia ter feito da mesma forma no Brasil, França ou na Itália?
               
Sim. Devo dizer a vocês que toda minha experiência na Índia foi para mim uma espécie de estudo para um projeto mais vasto que já comecei a empreender. Creio que todos os meios de difusão da cultura se tornaram estéreis pelo fato de que se abandonou inteiramente a busca pelo homem, tal como ele é. Começaram a nos dar estereótipos de homens, ersatz (substitutos) de sentimentos, do amor, da morte, do sexo, da moral. Trata-se de falsos problemas, já que vivemos mergulhados numa civilização adornada com a bandeira do otimismo. Tudo vai muito bem... com exceção de pequenas coisas. Em cima disto, se construíram falsos problemas. É o caso – e este é um dos lugares-comuns mais irritantes para mim – da juventude. A juventude sempre foi e será um problema. Não é um problema específico deste século. Ele pode revestir-se de um aspecto exterior: por exemplo, dar pontapés na barriga de uma velha (hoje, aliás, lhe cuspiriam na cara). A revolta dos filhos para com os pais, desde os tempos mais antigos, sempre existiu. Cada vez que uma nova geração chega, até mesmo para cumprir sua função, ela deve se revoltar: sem isto, ela não serve para nada.
               
Hoje, portanto, visa-se colocar falsos problemas e nos esquecermos dos verdadeiros problemas dos homens. E os verdadeiros problemas, o que são? Antes de tudo, é preciso conhecer os homens como eles são, começar por assumir um ato de humildade profunda e tentar se aproximar dos homens, vê-los como eles são com objetividade, sem ideia preconcebida, sem debates morais, ao menos no começo. Eu tenho um respeito profundo pelos homens. O homem mais horroroso é mesmo assim respeitável. O importante está em descobrir as razões pelas quais ele é horrível. Eu não me permito condenar ninguém.
               
Agora que o mundo se tornou tão minúsculo, continuamos a não nos conhecer. Não conhecemos nossos vizinhos, as pessoas do outro lado da rua, não conhecemos os suíços! Hoje, em que vivemos em grandes aglomerações, é extremamente importante começar a se conhecer, porque apenas partindo de um conhecimento profundo dos homens, e ao fazer deles uma análise muito realista, sem tomadas de posição (partis pris), sem querer demonstrar nada, a respeito desta ternura, desta afetividade, que pode nascer em relação ao outro indivíduo; talvez aí encontraremos a solução para os problemas que se colocam no mundo atual e que, mesmo tecnicamente, são diferentes daqueles que se colocavam antes de nós.

Uma nova escravidão
               
Talvez este tema nos distancie de nossa discussão, mas quero dizer que são minhas preocupações de ordem moral. A arte abstrata se tornou arte oficial. Posso compreender um artista abstrato, mas não posso entender que a arte abstrata se torne oficial, porque se trata realmente do tipo de arte menos inteligível. Estes fenômenos não se produzem sem uma razão. Qual a razão? É que se busca esquecer o homem o quanto for possível. O homem, na sociedade moderna e no mundo inteiro, com exceção provavelmente da Ásia, se tornou a engrenagem de uma máquina imensa, gigantesca.
                Ele se tornou um escravo. E toda a história do homem é feita de passagens da escravidão à liberdade. Há sempre um momento em que a escravidão domina, e então a liberdade toma as rédeas: mas esta domina muito raramente, ou por períodos muito breves; porque, mal atingimos a liberdade, imediatamente reconstitui-se a escravidão. No mundo moderno se criou uma nova escravidão. E esta escravidão, em que consiste? É a escravidão das ideias. E isto através de todos os meios, do romance policial ao rádio, ao cinema, etc. Graças também ao fato de que a técnica se desenvolveu extremamente, e que os conhecimentos que podemos ter de forma mais aprofundada, em um domínio restrito, para serem eficazes do ponto de vista social, impedem o homem de ter acesso a outros conhecimentos. Não lembro mais quem dizia: “Vivemos no século da invasão vertical dos bárbaros”. Ou seja, um aprofundamento imenso do conhecimento numa certa direção e uma extrema ignorância em outra.
                Desde que faço cinema, ouço dizer que é preciso fazer filmes para um público com a mentalidade mediana de um garoto de doze anos de idade. É um fato que o cinema – falo do cinema em geral –, como o rádio, a televisão, ou todos os espetáculos dedicados às massas, realizam uma espécie de cretinização dos adultos e, em sentido contrário, aceleram enormemente o desenvolvimento das crianças. É daí que vem esta ausência de equilíbrio que constatamos no mundo moderno: da impossibilidade em que estamos de nos compreender.

Não creio neste otimismo
               
Eis aí, acredito eu, um problema que deve ser colocado hoje de uma forma muito séria e até dramática: buscar fazer conhecer as coisas, disseminar as ideias, levar as pessoas a suspeitarem que há outras coisas neste mundo. Não creio de forma alguma neste otimismo sorridente que faz com que peguem um chefe de Estado doente, com úlcera, câncer etc., e que o vistam como uma vedete para apresentar na televisão, para que ele se faça de saudável, a explosão da vida, quando se sabe que lá dentro está tudo em pedaços! Este tipo de otimismo pode nos conduzir a horríveis infelicidades. O que pensar de um mundo que se quer acreditar absolutamente feliz e que, para ser feliz, deve beber, ou ir ao psicanalista, ou cheirar cocaína, ou tomar “tranquilizantes”. Estes “tranquilizantes” se tornaram populares de forma incrível; mal o homem experimenta uma pequena angústia, toma uma pílula, e a angústia se acaba! Acaba também a razão, o sentido da vida. A razão da vida inteligente, no sentido etimológico da palavra: “compreender” as coisas “por dentro”.
                Compreender, é isso que é preciso fazer hoje em dia. Porque diante de nós está prestes a nascer um mundo novo, no qual as descobertas técnicas extraordinárias foram feitas. Há claro sempre alguém aqui e ali que sabe o sentido do que faz, mas de forma muito vaga. Os outros se divertem como se lessem um romance. Eles não fazem ideia de tudo o que vai se passar no mundo. É por isso que a mentira circula de uma forma extraordinária. Creio que ela nunca foi tão disseminada quanto no presente.
                Querem um exemplo do poder da publicidade? Li no livro Hidden Pearsuasers. Trata-se do chocolate. Há dez ou quinze anos o vendiam sempre em grandes tabletes. Os chocolates pequenos eram difíceis de encontrar. Depois veio a publicidade dos dentifrícios (“o chocolate provoca cáries”), e ao mesmo tempo estão na moda as pessoas magras –eu sou gordo e sou a favor dos gordos. Subitamente, o consumo do chocolate diminuiu no mundo. Os pobres cultivadores de cacau morrem de fome, as crianças ficaram hidrópicas, foi trágico. O chocolate era uma coisa que saía de moda: era preciso retomá-la. Estudou-se o chocolate de forma muito séria e científica. Pensou-se que, para resolver o problema, era necessário apresentar o chocolate de uma tal forma que ele satisfizesse o sentimento de culpa do consumidor. E foi assim que se começou a fabricar chocolatinhos. Os negócios continuaram a prosperar, as crianças pararam de ficar hidrópicas, etc. É assustador, não? Vocês não acham?

Começar por se conhecer uns aos outros
                Hoje, o indivíduo é invadido a todo momento por coisas exteriores, e elas são sempre coisas ameaçadoras. Ao fim das contas, tudo é ameaçador. “Beba Coca-cola”, isto já é uma ameaça. Vocês acham que devemos estar satisfeitos com o mundo no qual vivemos hoje?

Não acredita que o mundo da Índia pode se tornar parecido com o nosso?
                Não me preocupo em olhar as coisas a esta distância. O que me preocupa é como os homens se comportam agora em relação a problemas imensos, porque toda nossa civilização é posta em causa hoje. Me interessa saber como pensamos em nos mover para salvar coisas que não sabemos exatamente se é preciso que sejam salvas ou não. Já seria um excelente ponto de partida se os homens começassem por se conhecer. Aconteceu na Itália, por exemplo, um momento extraordinário, durante a guerra, quando o invasor (os americanos) chegou. Estávamos sob o domínio dos alemães, dos fascistas, sob perseguições, etc, e então, num belo dia, os outros chegaram. Como inimigos. Três dias depois, eles perceberam que nós não éramos inimigos, porque éramos homens também, seus iguais. Me lembro de uma frase que estava em todas as bocas em Roma: “Este coitado tem uma mãe também”. Nasceu durante a guerra uma fraternidade extraordinária que conseguiram matar em três anos. Uma fraternidade admirável.
                Então, por qual razão não se faz o esforço de procurar o homem em todos os recantos, de começar a contar suas histórias aos outros homens, de mostrar que o mundo está cheio de amigos – e não repleto de inimigos, mesmo que existam inimigos. O tigre, de súbito, por um acidente qualquer, se torna devorador de homens. Mas, por natureza, ele não é isso. Os automóveis também são devoradores de homens, porque quinze pessoas morrem todos os dias nas estradas da França. No entanto, não podemos odiar os automóveis porque ocorrem acidentes.
                E, bem! E o cinema? Que função pode ter? A função de colocar os homens diante das coisas, da realidade tal como ela é, e assim fazer conhecer outros homens, outros problemas.

Mas ele então estaria prestes a perder seu público!!
                Sim, mas estas reduções de público são mínimas. E depois, não se pode pensar tudo em função do cinema. É preciso pensar em função do mundo. É uma realidade hoje a televisão. Há também o rádio. Há também os livros, que custam dez francos. Há também os jornais, que custam vinte e cinco francos – custam um pouco mais caro que os livros e são mais deletérios!

As coisas tais como elas são
               
Este empreendimento de que falo, é preciso levá-lo adiante por todos os meios. Minha tentativa pode ser ridícula, inútil, não dar em nada, mas, enfim, já comecei a fazer programas para a televisão. Ali eu posso não apenas fornecer a imagem, mas dizer e explicar certas coisas também. Eu me coloquei como tarefa contribuir para o conhecimento de um mundo muito próximo de nós. E que, mesmo assim, contém quatrocentos milhões de homens. Quatrocentos milhões de homens, isso não é pouco. É um sexto do gênero humano. É preciso conhecê-lo.
                Talvez meu programa de televisão possa ajudar na compreensão de meu filme. O filme é menos técnico, menos documentário, menos explicativo, menos didático, mas, como ele nos dá a perceber um país mais através da emoção que da estatística, ele nos permite penetrá-lo ainda melhor. Eis o que me parece importante e que eu tenho a intenção de fazer no futuro. Foi assim que tentei colocar de pé com amigos na França um projeto parecido.

Você mesmo quer rodar estes filmes?
               
Levá-los à realização, sobretudo. Começar pela pesquisa, pela documentação e passar em seguida aos motivos dramáticos, mas para representar as coisas tais como elas são, para ficar no caminho da autenticidade. Sim, é preciso que o cinema ensine os homens a se conhecer, a reconhecer uns aos outros, ao invés de continuar a contar sempre a mesma história. Só se fazem variações sobre o mesmo tema. Tudo o que podemos saber sobre o furto, sabemos; tudo sobre o que podemos saber sobre o assalto, sabemos. Tudo o que podemos saber sobre o sexo, não como ele realmente é, mas seus preparativos, seu processo, nós conhecemos. A morte, o que significa ainda? A vida, o que significa ainda? A dor, o que significa? Tudo perdeu sua significação real. É preciso tentar, repito, conhecer as coisas tais como elas são, não em termos plásticos, mas em sua matéria real. Aí, sem dúvida, reside a solução. Então, talvez só assim poderemos começar a nos orientar.

(Entrevista retirada do catálogo “Jacques Rivette – Já Não Somos Inocentes” e originalmente publicada na revista Cahiers du Cinéma, n. 94, abril de 1959.)

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