quarta-feira, 20 de abril de 2016

A arte da fuga


[sobre A Tortura do Silêncio(1953), de Alfred Hitchcock]
Jacques Rivette

“Aqueles que querem fazer nossos heróis estacarem sob a égide de uma medíocre bondade, onde alguns intérpretes de Aristóteles limitam o espectro de suas virtudes, não encontrarão aqui o quefazer, pois a virtude de Polyeucte aspira à santidade e não possui nenhum traço de fraqueza”.
(Corneille, Análise de Polyeucte)

Os filmes de Hitchcock são frutos de um segredo profissional; sem dúvida, não estão à altura do jugo da crítica, que sempre se mostrou fundamentalmente incapaz de dar conta destas obras. Apenas o metteur em scène– e entendo por esta expressão designar aquele que se colocou os verdadeiros problemas de sua arte – pode lhes pressentir a beleza. Da mesma forma nos apareceram as comédias de Howard Hawks, a obra americana de Renoir,a de Rossellini, os primeiros testemunhos deste cinema moderno cujo conhecimento será reservado aos cineastas– assim como os pintores há cem anos tomaram para si deforma ciumenta o império da pintura.
Se a mais nobre reflexão de nossa época escolhe exprimir-se por intermédio do cinema, não é, portanto,para aceitar ser traduzida em alguma língua estrangeira,mas para permanecer invisível a quem só é sensível às aparências desta arte. É pelo exercício cotidiano de seu poder que o cineasta afirma da forma mais rigorosa o seu pensamento; e o mais profundo destes pensamentos se confunde com a confecção dos elementos mais aparentemente exteriores, mais formais. E não é esta a marca de uma arte que atingiu o mesmo ponto de realização que encontrou a música na época de Bach?

Eu poderia, sem dúvida, oferecer aqui alguma temática hitchcockiana, demonstrar a permanência e a profundidade de seus temas; mas, além do fato de que este tipo de exegese deixa sempre no autor um sentimento de insatisfação um tanto culpado, satisfaria de forma demasiadamente justa àqueles a quem gostaria menos de esgotar a curiosidade do que irritar através de minhas esquivas – e assim incitá-los a olhar para a tela de cinema, ao invés de só buscarem os pretextos para sua escapada diante daquilo que é fundamentalmente o cinema: este meio de ligação entre alguma coisa de exterior e de muito secreta, relação que um gesto imprevisto desvela sem explicar.

Se me fosse necessário definir com uma palavra a arte de Hitchcock, escolheria exigência; não conheço cineasta que se tenha proposto de forma tão constante tão perigosa empresa. A dificuldade só ignora a beleza na visão dos amadores; mas esta busca obstinada de um equilíbrio sempre ameaçado a atinge de forma mais segura que os confortos da tragédia. O que deseja Hitchcock senão nos manter neste ponto de instabilidade almejada, onde o futuro é a cada segundo ameaçado, tensão que expia o crime, a loucura, o abandono às trevas: fronteira extrema onde lutam os últimos redutos do indivíduo, mas de onde unicamente poderia surgir a verdadeira vitória? Não há um único plano neste filme que não nos imponha o pressentimento do perigo, um único instante onde não seja perseguida a ideia mais perigosa da vida espiritual: qual destas vias, a estética ou a moral, poderia, sem trair sua essência, recusar-se a ser o veículo deste desconforto?

Vejo que criticam Hitchcock pela escolha de seus temas; mas onde outros veem preocupações comerciais,eu preferiria reconhecer a ambição de não deixar nada se exprimir com equívoco; onde poderiam ver o abandono às facilidades da intriga, vejo o desejo de recusar ao herói toda saída, toda escapada, e assim perfazer a armadilha onde o indivíduo, concernido pelos périplos da trama,deve confessar e afirmar ao mesmo tempo, num ponto extremo de aprisionamento, sua extrema liberdade.E se Hitchcock não pode levar à perfeição uma bela maquinação sem um tanto de complacência, eu a vejo como admirável, já que esta coloca, acima da preocupação com a verossimilhança, a plenitude do propósito mais rigoroso imaginável, além da perseguição até as últimas consequências de seu pensamento fundamental.

Talvez apercebamo-nos aqui em filigrana o próprio tema deste filme, inexplicável se não reconhecermos a ideia mais elevada e exigente da confissão – em que o culpado, pela remissão do pecado, compreende-se como totalmente liberado da culpa, e mesmo obrigado, se necessário, a levar o seu confessor a assumi-la e expiá-la em seu lugar (recordo rapidamente como Vigny, em suas notas a Cinc-Mars, ligava igualmente o confessor às figuras do amigo e do cúmplice). Esta preocupação não é nova em nosso autor; reencontramos, é claro, o tema do crime permutado em Pacto Sinistro; mas qual de seus filmes – e mesmo estas histórias de espionagem diante das quais alguns se ruborizam – não postula, como condição de sua inteligibilidade, a crença na alma e na reversibilidade?Reencontramos em Hitchcock, sobretudo, o gosto de suscitar entre os seres as relações mais estreitas possíveis.Unir os destinos com o melhor laço que o espírito possa conceber: esta ambição é comum a tudo que o cinema,nestes últimos anos, nos tem dado de mais novo – masquem poderia se gabar de tê-la levado a um tal grau absoluto?Estes casais, obcecados pela culpabilidade (coração de todos os filmes de Hitchcock), perseguem sob tantos rostos a mesma aventura: conseguir fazer hesitar entre duas almas a culpa, até aboli-la por intermédio da irremediável confusão de seus destinos.

Se há um mecanismo nesta arte, muitos interrogatórios no-lo ensinam: o metteur em scène não desempenha sempre o papel de Karl Malden neste filme, mecânica “inumana” que embosca as criaturas de carne e de sangue e as obriga à confissão pelo sofrimento? Qual é, aliás, o sentido desta reprovação de insensibilidade? O cineasta é livre para tentar menos comover que desestabilizar o pensamento, e renová-lo pelos choques descontínuos de efeitos cuja beleza não advém do sentido; é o sentido que advém da beleza. De surpreender e de afirmar, ao invés de tentar provar algo através da infelicidade humana.

Eu proporia, portanto, algumas observações sem objeto: que a emoção não consiste no fim da arte, e que podemos reconhecer em Hitchcock o mesmo cuidado que guia ultimamente os filmes de Renoir e Rossellini – abstrair do coração aquilo que não vem da alma; que o artista moderno impõe, a princípio, à sua obra esta catarse a que os antigos submetiam o espectador, substituindo a piedade e o terror pelo amor e a fascinação – e conhecemos hoje filmes muito cômicos feitos para fazer rir, muito trágicos com o fito de emocionar, em que a emoção se engendra e age por meio da opressão e da asfixia. Hitchcock não se preocupa com as paixões, mas com o que as esmaga, efunda nisto a sua grandeza: o instante em que o homem sacrifica seus sentimentos a seu destino, em que, por intermédio da aceitação, ele transmuta esta fatalidade em providência e, substituindo os deuses por um Deus de justiça, se abandona a este confronto solitário. A ambição deste cineasta não consiste em apaziguar, mas em inquietar, de ser aquele pelo qual o escândalo chega,e de fazer com que seus heróis atinjam, graças à clara visão daquilo que os relaciona aos outros seres, uma consciência insuportável da existência – e isto sobretudo se eles se recusarem a empreender esta marcha. Mas ele o faz afirmando o perigo contido em cada segundo, ao assinalar aquilo que lhes ameaça a salvação e ao impor enfim a ideia mais exigente da aventura individual, da predestinação e, finalmente, da santidade. Saudemos aqui um cinema do inumano, que finalmente desafia as seduções sensíveis do coração, só se debruça sobre aparte mais secreta do homem para imolá-la, e se interessa menos pelo homem do que por aquilo que o transborda: o Deus voraz, cuja Graça vela pelo homem a cada passo, e para quem a danação ou a salvação constituem uma única e mesma armadilha, cujo fito é precipitar a criatura nos abismos de seu implacável amor.

A mise-en-scène não será jamais para Hitchcock uma “linguagem”, mas, incansavelmente, uma arma no encalço do segredo dos corpos, deslizando nas brechas do gesto e do pensamento a lâmina mais penetrante, o ferro melhor curtido que qualquer arte já colocou nas mãos de um autor – dentre todos o mais lúcido, sondando os rins e os corações de suas vítimas para enfim desmascarar sua verdade mais ignorada, antes de tudo por eles mesmos.

Acompanhem, na pista dos perigos da mise-en-scène, seus gestos desajeitados, deserdados; como,espionados pelas contra-plongées que elidem o solo sob seus pés, sufocados pela obsessão das verticais, acossados nas cavidades destes enquadramentos exíguos, cujos limites assaltam sem cessar a carne pulsante da realidade;estes personagens não ousam aventurar-se a outros movimentos senão os reflexos amedrontados e contidos de quem marcha à beira do abismo. O vidro diante da fronte do procurador, a bicicleta abandonada no corredor, as flores nos braços do sacristão, tudo delineia as arestas de um cinema do provisório, do descontínuo, da ordem do acidental – elementos que, no entanto, devem compor a fatalidade. Apenas os rostos, unicamente os olhos– fixos, subitamente desviados – ousam ainda desvelar as cumplicidades,interrogar de forma vã o cúmplice e submeter o corte do plano ao breve brilho de um olhar.

Fora do perigo, todos aspiram ao destino, à sua consumação: eles estão mergulhados na questão moral até o pescoço, e já não tentam dela se desgarrar; que espécie de paródia da liberdade poderia melhor salvá-los senão a conclusão de seus destinos? Para além do julgamento dos homens, não lhes resta esperar outra coisa – com o mínimopossível de gestos, uma grande obstinação: enrijecer-se,temperar-se como a bala e a espada, para assim atravessar seu destino, com o gosto das cinzas já irisando a boca, até a consumação. A chama negra na qual Montgomery Clift visivelmente se transforma sob nossos incrédulos olhares arrasa, como o contágio de um incêndio tenebroso, a carne de todos os que dele se aproximam; apenas a crosta do visível continua a nos enganar. Jamais uma trama tão bem urdida de almas, uma tão absoluta dependência espiritual tinha se confundido de forma íntima com a experiência da solidão, que sufoca o ser no exato momento em que ele sente os laços que o unem ao mundo. Seria um acaso que o tema do sacrifício, que já atravessava a trama de Sob o Signo de Capricórnio, surgisse aqui novamente para reunir-se em nosso espírito aos temas da renúncia e do abandono a Deus (Renoir e Rossellini)?

Enfim, desejo me desculpar por um artigo onde o superlativo reina de forma tão imprudente; mas talvez tenha sido este o único meio de honestamente dar conta de um gênio que faz das experiências extremas sua regra de conduta e que ignora a arte de decepcionar e de embotara sensibilidade, dons estes que satisfazem a tantos belos espíritos.


“L’art de la fugue”, Cahiers du Cinéma, n. 26, agosto-setembro de 1953. Tradução de Luiz Soares Júnior.
Texto retirado do catálogo “Jacques Rivette – Já Não Somos Inocentes”.

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