domingo, 28 de agosto de 2016

Jogo de Cena


1- Jogo de Cena solapa todo o cinema de entrevista, inclusive os filmes recentes de Eduardo Coutinho. Este filme revela uma coragem extraordinária por questionar a obra do próprio cineasta. 2 – O corte que emenda as frases “eu saí um pouco do foco do casamento”, é histórico. 3 – Jogo de Cena tem uma dimensão trágica. Lá pelo meio do filme ou um pouco mais adiante, uma mulher conta sua história, mas essa história eu já a ouvi contar há poucos minutos, quem foi mesmo que a contou? Que rosto? Chega um momento em que o discurso se desvincula dos corpos falantes. Ele passa a existir em si. O discurso se fala a si mesmo. Os falantes são apenas os hospedeiros da fala. Jogo de Cena coloca o ser em questão, pelo menos enquanto ser que expressaria sua subjetividade com palavras e lágrimas. 4 - Como fica quem acreditava que a fala dos entrevistados nos filmes do Coutinho era a expressão de sua subjetividade? 5 - As atrizes muito conhecidas funcionam como âncora fincada na realidade. Delas sabemos que interpretam. Mas, e se houver atrizes cujos rostos nos sejam desconhecidos? E as atrizes interpretam o quê? Uma outra pessoa ou a sua experiência pessoal ao interpretar outra pessoa, portanto a si mesmas? 6 - Santiago e Jogo de Cena são a prova de que o ensaio filosófico é possível no cinema, não como falação ilustrada por imagens, mas pelo aproveitamento e aprofundamento dos recursos da linguagem cinematográfica.        
(14/01/2008)

O boom do documentário

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O “boom” do filme documentário, que já dura umas duas décadas, é uma nova onda de naturalismo. Citemos filmes como o Wilson Simonal ou Loki no meio de uma extensa filmografia. Seus artifícios e convenções já estão transparecendo, a entrevista por exemplo. E o Ulysses do filme documentário já explodiu. Seu título é: Jogo de Cena, que não deixou muitos sobreviventes.
Penso que é necessário perceber as dimensões de Jogo de Cena. Não é um filme importante e transformador no quadro do cinema documentário brasileiro, é um abalo sísmico de 7 graus na escala Richter no cinema documentário em geral, ou, mais precisamente, no documentário baseado na fala. Jogo de Cena é uma explosão transformadora da magnitude que tiveram no passado filmes de Eisenstein ou Godard. Talvez se possa dizer que Jogo de Cena anuncia o encerramento de um ciclo de cinema que Jean Rouch iniciava há meio século com Eu, um negro.
Pode-se superar Jogo de Cena? Sim, mas como?
(31/07/2009)

Moscou

Concordo plenamente com o comentário de Eduardo Escorel (Piauí, 35, 3.8.2009) sobre o último filme de Eduardo Coutinho: Moscou é uma catástrofe e um impasse.          

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Quanto ao impasse, penso que ele deve ser colocado em outra perspectiva que não apenas a carreira de Coutinho ou sua filmografia: ele realizou filmes notáveis, este último infelizmente não é tão bom. Penso que o impasse não é só do Coutinho, mas é coletivo.
Jogo de Cena põe em dúvida toda a filmografia de Coutinho desde Santo Forte (uma coragem excepcional). Jogo de Cena põe em dúvida todos os filmes documentários baseados na fala como discurso da subjetividade e no relato de histórias de vida. Põe em dúvida a relação entre o corpo falante e a fala da subjetividade (quem emite esta fala? essa fala fala do quê?). Põe em dúvida a relação entre a fala e a subjetividade.
Após a projeção de Jogo de Cena falei e estranhei (isto é verdade): quem fala? Eu? Eu quem? O filme desestabiliza a noção de sujeito. Ou eu estou a ver fantasminhas, ou Jogo de Cena é de uma trágica radicalidade. O problema não é de Coutinho, mas de todos aqueles que se sentem atingidos por essa trágica radicalidade.
Filmes de que participei, gravados antes de Jogo de Cena, me parecem hoje pueris. Estou atualmente trabalhando num documentário que envolve discurso da subjetividade e relatos de histórias de vida: simplesmente eu não consigo entrar neste filme. Jogo de Cena foi longe demais.
A frase de Escorel – “Coutinho é o grande ausente de Moscou” – é de uma grande beleza e de uma extraordinária precisão. Coutinho não poderia “ser” presente porque o sujeito está desestabilizado. Quando voltaremos a ser presentes?
Fantasiei que, para quebrar o impasse em que Jogo de Cena nos meteu, Coutinho poderia/deveria sentar diante de uma câmera, em primeiro plano, permanecer em silêncio, por tempo indeterminado.   
(06/08/2009)

Moscou 2

Revi Moscou. Um filme profundamente melancólico.

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O maior problema de Moscou talvez sejam os fantasmas que se interpõem entre nós e ele. Sem dúvida Jogo de Cena, filme tão radical, tão definitivo, que não é possível voltar atrás. E provavelmente um outro fantasma projeta também sua sombra sobre Moscou: A Gaivota.
Talvez devêssemos tentar mudar o nosso discurso, enveredar pela pista proposta por Carlos Mattos: por que Coutinho saiu de sua posição de entrevistador, de interlocutor, de cineasta sentado atrás da câmera? Para mim (por enquanto) não há grande dúvida: esse cineasta interlocutor sentado atrás da câmera não só não faz mais sentido, como não é mais possível após Jogo de Cena, que dissolveu o sujeito entrevistado e, por consequência, o sujeito entrevistador. Em Moscou, o sujeito atrás da câmera está dissolvido, duplamente dissolvido eu diria: não só Coutinho, mas também Henrique Diaz (por mais que se possa explicar a retração do diretor teatral pela dinâmica dos laboratórios).
Há outra pista possível: e essa eu não a entendo. Que Coutinho tenha deixado de ser o sujeito que provoca e recebe a fala de um outro, acho que é uma consequência lógica e inapelável de Jogo de Cena, isso posso intuir. Que ele tenha deixado de ser um cineasta que se desloca, eu não entendo. Por que ele se fecha num espaço único? Por que nesse espaço escolhido não entra luz? Por que passar de O Fim e o Princípio, filme de deslocamento e de luminosidade (a abertura de Peões também me deixou uma lembrança de deslocamento e luminosidade), para um espaço fechado e escuro? Qual é a busca? (12/08/2009)         

Eduardo Coutinho & Sophie Calle – 2

 Foi escrevendo sobre Sophie Calle (Coutinho & Sophie Calle, de 3.8.09) que pela primeira vez pensei em Jogo de Cena como um filme centrípeto.

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Isto me permitiu abordar o filme sob um ângulo novo para mim. A identidade/oposição entre filme e exposição repercutiu na compreensão da trajetória da obra de Coutinho.
Em Jogo de Cena, todas as mulheres convidadas convergem, através de uma estreita passagem (a escada), para o ponto onde encontrarão o cineasta, se sentarão e falarão. Isto é uma novidade nos dispositivos dos filmes de Coutinho.
Coutinho, até então, se deslocava, ia ao encontro das pessoas que entrevistaria, fosse a favela de Santo Forte ou a multiplicidade dos apartamentos do Edifício Master.
Se pensarmos em Cabra Marcado para Morrer, percebemos que é essencialmente um filme de deslocamento. Coutinho volta à região onde começou a filmar o primeiro Cabra em 1964. Sai à procura das pessoas que participaram do filme, encontra algumas. As informações colhidas lhe permitem chegar a Elisabeth Teixeira, e daí sai à procura dos filhos espalhados pelo Brasil. Do ponto de vista do espaço, o segundo Cabra é um filme sem centro. Coutinho não é um centro, é um articulador cujo constante movimento interliga fragmentos de uma história despedaçada.
Não tiro conclusão nem significação. Simplesmente constato que de Cabra Marcado para Morrer a Jogo de Cena, Coutinho passou de um dispositivo acêntrico (não no sentido de excêntrico, mas no de: desprovido de centro) baseado no deslocamento, para um dispositivo fortemente cêntrico. (13/08/2009)         

Eduardo Coutinho & Luiz Ruffato

Li Estive em Lisboa e lembrei de você de Luiz Ruffato.

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Qual é a operação proposta por Estive em Lisboa? O autor apropria-se do depoimento de uma pessoa que narra uma história de vida. Só que neste romance, não só o depoimento como a apropriação são uma ficção, uma simulação, LR simula no plano do literário o que Eduardo Coutinho tem praticado em filmes recentes (Edifício Master etc): apropriação audiovisual de depoimentos estimulados de pessoas que narram histórias de vida. O que Coutinho radicalizou de forma tão perturbadora (para não dizer trágica) em Jogo de Cena: o depoimento destaca-se do sujeito que vivenciou para se tornar matéria para o trabalho interpretativo de uma atriz. Mais um pequeno deslocamento e podemos imaginar que o ter-sido-vivido não é indispensável para que o texto se sustente e para o trabalho da atriz.  Basta o texto ter coerência, verossimilhança, densidade. Aí entra LR. O Coutinho desses filmes e o Ruffato desse romance pertencem ao mesmo universo estético e social. Ambos pertencem à era do “reality show” ou “esfera realidade” ou “nebulosa realidade” ou “reality as a show” ou “reality is a show” ou “show is reality”. O que no cinema se manifesta sob a forma de documentário e na literatura como “a sede de realidade do mercado editorial contemporâneo” (nas palavras de Vilma Costa). E não só de realidade mas também de simulacros. (26/02/2010)

Coutinho e Paul Ricoeur
Tendências filosóficos e psicológicas atualmente dominantes afastam-se das teorias substancialistas e essencialistas do “eu”. Ou “eu” não é uma substância, uma identidade guardada nas profundezas do ser e que seria posto em situação pela trajetória da vida e da história.
O “eu” tende a ser visto como uma produção, uma construção constante. Mais do que isto: ele é esta produção. A concepção do “eu” como dinâmica incessante levaria a sua dissolução, portanto fazem igualmente parte desta construção movimentos de fechamento e de estabilização que fixem o sentido da vida.
O movimento de estabilização é parte integrante do movimento de produção. Autores importantes (as obras de Paul Ricoeur Soi-même comme un autre e Temps et récit; L’invention de soi, Une théorie de l’identité de Jean-Claude Kaufmann, sugestão editorial para Jorge Zahar) dão à narração papel fundamental na dinâmica da produção de si e na fixação do sentido da vida. Vista desta forma, a identidade é a história que cada um se conta. Paul Ricoeur é taxativo: a identidade individual se constrói de um modo narrativo. O processo de construção de identidade é um processo narrativo. O essencial para o “eu” é o diálogo entre a experiência vivida e o relato. E Kaufmann acrescenta: entre a experiência vivida e o relato é às vezes difícil distinguir qual é o motor real, o que domina.
Pois parece que Jogo de Cena deu uma alfinetada irônica nessa narração considerada como parte fundamental do processo identitário, já que o relato pode ir passeando por bocas e corpos que não vivenciaram o relatado.

(...) (24/06/2010)        

Jogo de Cena – 2
No livro O Espaço Biográfico, Leonor Arfuch lembra que o movimento da “entrevista”, que aparece na imprensa na segunda metade do século XIX, é o inverso do movimento autobiográfico. Este parte do privado, ou mesmo do íntimo, em direção ao público. A entrevista parte do público: o jornalista procura o privado em busca da informação. Depois o jornalista publica a palavra recolhida (e retrabalhada).
O cinema de entrevista segue basicamente esse modelo, quer se trate da palavra autorizada do especialista, quer da palavra testemunhal ou autobiográfica.
Em várias obras de Coutinho, este movimento é representado concretamente pelo cineasta e sua equipe que vemos se deslocar em direção ao entrevistado/a, como em Cabra Marcado para Morrer e outros filmes. O entrevistador procura o entrevistado.
Esse movimento é modificado por Jogo de Cena: as entrevistadas dirigem-se ao espaço do entrevistador. Evidente: a ida das pessoas que falarão resulta de um contrato prévio. Houve uma seleção e só as selecionadas alcançam o espaço da fala. Resta que o movimento representado visualmente é inverso ao de filmes anteriores (isso já foi muito comentado).
A seleção em Jogo segue um movimento diferente.
Em Edifício Master o prédio oferecia um universo delimitado de entrevistados potenciais dentro do qual, em várias etapas, se operou uma seleção. Tudo indica que essa seleção foi feita pessoalmente: alguém da equipe propõe a um morador/a ser entrevistado/a para o filme. A pessoa contatada recebe a proposta e fica livre de aceitar ou recusar, é um “não” ou um “sim”, sendo que esse “sim” pode ser negociado (restrições temáticas, duração, dia, hora etc.). Negociação que ocorrerá entre o “convidado/a” e o emissário da equipe.
Em Jogo o movimento cineasta / entrevistada potencial existe. Mas, primeira diferença essencial, ele não é pessoal e se volta para um universo praticamente irrestrito. Se acreditarmos no filme, o movimento consiste na publicação de um anúncio num jornal: “Convite / Se você é mulher com mais de 18 anos, moradora do Rio de Janeiro, tem histórias para contar e quer participar de um teste para um filme documentário, procure-nos. Ligue a partir de 17 de abril das 10 às 18h, para ... / Vagas limitadas”.
A primeira etapa é dirigida a um universo anônimo. A partir daí, o que pode acontecer? Por parte da equipe, nada. Só esperar telefonemas. Do outro lado será necessário que pessoas resolvam telefonar, ou seja sair do anonimato. Nesse telefonema vejo uma das grandes contribuições propostas do filme. O que muda?
A leitora do anúncio (quase uma licitação), desconhecida de quem o publicou, somente se individualiza quando ELA toma a decisão de responder. O dispositivo requer uma tomada de decisão incomparavelmente mais determinada e voluntária do que responder “sim” a quem convida pessoal e verbalmente para dar uma entrevista . É necessário se identificar, ter vontade de tornar públicas as “histórias” e, ainda mais, correr o risco, após a individualização, de ser rejeitada no “teste”.
O nível de iniciativa requerida por esse dispositivo me faz pensar que Jogo de Cena se abre para o “espaço autobiográfico”. O espaço autobiográfico se manifesta em Edifício Master, onde pessoas contam histórias de vida. Mas o nível de decisão pessoal exigido por Jogo é tão maior que se atravessa uma fronteira e se atinge o espaço em que o sujeito toma a iniciativa de tornar pública sua história de vida. É necessário que o “desejo autobiográfico” se manifeste mais intensamente sem contato direto com o proponente. A diferença não está nas histórias contadas ou na forma do relato, nem no fato de contar sua vida, mas na intensidade e na forma da decisão a ser tomada para entrar no processo proposto.
Observação IMPORTANTE: esses comentários são feitos exclusivamente no quadro do cinema de entrevista praticado no Brasil e não leva em consideração as múltiplas formas de manifestação do espaço e do desejo autobiográfico na televisão e da internet.
Outra observação: eu fiz a experiência de responder a um anúncio parecido ao de Jogo para o espetáculo teatral Nãotemnemnome. (26/08/2011)       

Jean-Claude Bernadet                                                                                

Trechos dos textos de Jean-Claude Bernadet. Retirados do site http://jcbernardet.blog.uol.com.br/ e reunidos no livro Eduardo Coutinho/Milton Ohata (org.).

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