domingo, 11 de setembro de 2016

DA EPIFANIA NO CINEMA DE KIAROSTAMI E ROSSELLINI*


Alain Bergala**

Quando Kiarostami começou as filmagens de Onde fica a casa do meu ami­go? (1987), ele não suspeitava que o filme seria o primeiro de uma trilogia que abarca, na sequência, E a vida continua (1992) e Através das oliveiras (1994). O mote desse conjunto surgiu com um imprevisto, um tremor de terra assas­sino cujo epicentro se encontra na região deGilan, onde Kiarostami acabara de rodar o primeiro dos filmes. O segundo conta como o cineasta viaja para essa região, imediatamente após a catástrofe, em busca (a qual não se conclui) das duas crianças que brincavam no filme anterior. O terceiro conta um epi­sódio particular das gravações do segundo filme: um adolescente que tinha um papel pequeno em E a vida continua viu-se escalado, na ficção, para fazer par com a jovem por quem está apaixonado na vida real e que lhe é proibida em virtude dos costumes sociais. Esses três filmes têm em comum o cená­rio, uma Gilan devastada – a partir do segundo, por um desastre natural. A característica da trilogia da guerra de Rossellini – Roma, cidade aberta (Roma città aperta, 1945), Paisà(1946) e Alemanha, ano zero (Germaniaanno zero, 1948) – é situada após outro desastre (a Segunda Guerra Mundial), este provocado pelos homens, e tem ruínas como quadro e cenário.
Rossellini e Kiarostami possuem em comum certo gosto por ruínas, mesmo que por razões radicalmente diferentes. O momento que interessa a esses dois cineastas das ruínas é aquele que cria esperança, o pós-catástrofe imediato, quando a solidariedade humana ainda leva a melhor sobre egoís­mos e as diferenças de classe e patrimônio são provisoriamente apagadas pelas condições de vida precárias impostas tanto aos pobres como aos ricos, pela urgência da sobrevivência imediata. Hossein, o jovem de Através das oli­veiras, explica com seriedade ao estupefato cineasta da ficção que não deveria mais haver obstáculos a sua união com a jovem por quem está apaixonado, Tahereh, uma vez que a ordem social que proibia a formação desse casal (a família dela tinha uma casa, e a dele não) fora anulada pelo tremor de terra, que destruiu todas as residências.
A semelhança entre as obras de Kiarostami e de Rossellini não se deve a uma influência cultural direta, pois parece que os filmes italianos que mar­caram o cineasta iraniano em sua juventude foram antes os de De Sica que os de Rossellini, de quem, em última análise, ele fala muito pouco. Podemos dizer que Kiarostami, em início de carreira, fez cinema rosselliniano sem saber, porque sua moral do cinema e suas convicções de cineasta vão muitas vezes ao encontro, em toda a inocência, das do cineasta italiano, sem qual­quer afiliação consciente.

As convicções comuns

A primeira dessas convicções é a de que a filmagem jamais deve ser simples­mente a execução do roteiro. Quando Kiarostami se compromete com um filme, trata-se antes, para ele, de encontrar a paisagem, os cenários naturais e as pessoas que atuarão, permitindo que o projeto inicial se transforme e se encarne em função dessa realidade. Ele partilha com o Rossellini do pós-guerra o gosto por filmar aqueles que não são atores, que não têm técnica de interpre­tação, que não têm um fantasma de dominação sobre a personagem a encarnar nem sobre a emoção do espectador. Kiarostami encontra mais frequentemen­te entre seus arredores, seus amigos, aqueles que atuarão em seus filmes. Ele experimentou filmar com um ator profissional apenas uma vez (o cineasta de Através das oliveiras, bastante convincente) e afirma que lhe tirou toda vontade de recomeçar. Por outro lado, ele teve muito prazer em colocar em cena (ou recolocar, vertiginosamente) no papel de si mesmos os cineastas Makhmalbaf e Sabzian, o herói de má sorte de Close-up (1990), realmente preso e em processo de se fazer passar pelo primeiro. Rossellini gostava de filmar com aqueles que não eram atores, mas no intuito de se apropriar de sua aparência exterior, de seus gestos, e servir-se deles como se fossem marionetes de sua própria criação, jamais enquanto personagens reais cuja personalidade poderia alimentar sua ficção, em oposição ao que se deu em relação às atrizes Anna Magnani e Ingrid Bergman. Kiarostami, pelo contrário, enveredará cada vez mais, com um filme como Dez (2002), por um cinema em que a pessoa filmada será tão importante quanto o cenário inicial, se não mais, e em que a sua personalidade, o seu pró­prio ser, vai se tornar a principal matéria-prima do filme.

A segunda dessas crenças, pela qual Kiarostami seja talvez o mais ros­selliniano dos cineastas em atividade hoje, é a de que o filme jamais deve se contentar em ser um objeto liso e fechado em si mesmo, o mesmo para todos aqueles que constituem o público. Ele crê, como Rossellini, que cabe ao espectador, e até mesmo a cada espectador individualmente, a responsa­bilidade pela existência do filme em sua consciência ao longo da travessia. Kiarostami chega ao ponto de pensar que há um dever do espectador, qual seja, de “finalizar o filme, a obra” e, durante a projeção,

refletir sobre seu mundo e aquilo que o cerca. A combinação dos dois imaginários, o do cineasta e o do espectador, cria uma verdadeira obra, mais durável, autêntica e salutar que um filme cujo objetivo seja o de contar uma história e mexer com os ner­vos do espectador1.

Rossellini poderia ter dito a mesma coisa, palavra por palavra, por ocasião da sua revolução do cinema moderno. A função que os dois cineastas atribuem ao cinema, cada um em sua época e país, é a da transformação do espectador ao longo e durante sua experiência da travessia do filme. Trata-se de uma visa­da que libera o espectador, que o agita em seu conforto moral, deixando-lhe nos filmes praias onde ele poderá, diante das imagens, pensar na própria vida e em seu lugar no mundo. Apesar das décadas que os separam, o inimigo con­tinua sendo o mesmo para ambos os cineastas: o cinema de entretenimento dominante, que tem por objetivo distrair o espectador de suas experiências e suas condições de vida e colocá-lo em comunhão com emoções coletivas este­reotípicas bem orquestradas, as mesmas para todos, as quais frequentemente não têm relação com sua própria vida.

A relação com uma realidade enigmática

Os dois cineastas giraram muito em torno de uma questão central nas duas obras: a relação das personagens com uma realidade que para eles é enigmáti­ca, opaca, cuja travessia é tão importante quanto toda a evolução psicológica inscrita no cenário, se não mais. Nos filmes de Kiarostami, assim como nos de Rossellini, acontece frequentemente de a personagem ser confrontada com um lugar, uma população, com os modos e as situações com as quais ela man­tém uma relação de alteridade, de estrangeirismo e de ilegibilidade, se não de exclusão. Segundo essa perspectiva, O vento nos levará (1999) é, sem dúvida, o filme de Kiarostami mais próximo do estilo Bergman de Rossellini. A situação do casal de ingleses de Viagem a Itália (Viaggio in Italia, 1954) não é tão dis­tante da do cineasta de O vento nos levará: o mesmo deslocamento, a mesma falta de compreensão do ambiente em que estão imersos, a mesma dificuldade em se comunicar com o povo aborígine. Ele não está muito longe do cineasta saído de Teerã para filmar o ritual de laceração da face das mulheres como símbolo de luto de Karin, de Stromboli(1950), confrontada com o ritual de pesca de atum cuja dimensão sagrada lhe escapa completamente. Tanto para o cineasta italiano como para o iraniano, trata-se acima de tudo de filmar o confronto quase físico entre uma personagem central, deslocada, com refe­rências de vida habituais perdidas, e lugares, cenários, paisagens, costumes, mentalidades e pessoas que resistem a sua compreensão habitual do mundo. O herói de Kiarostami frequentemente aparece estupefato diante daquilo que ele vê e daquilo que as personagens que ele encontra lhe dizem. Desde seu primeiro curta-metragem, O pão e o beco (1970), Kiarostami “perdia” a per­sonagem, um menino do Teerã, em uma encruzilhada desconhecida, onde ele o filmava, meio atordoado, meio chocado, simplesmente observando, como se fossem alienígenas, as pessoas bastante comuns passando por lá. O herói míope de O vento nos levará tem muitas vezes o mesmo rosto vazio e obstina­do que o de Ingrid Bergman em suas caminhadas por ruas e locais de Nápo­les em Viagem à Itália. Os dois cineastas partilham da mesma convicção: a de que lhes é absolutamente necessário permanecer no exterior do rosto de suas personagens e filmar do modo mais neutro e mais seco possível, sem nenhuma empatia psicológica, o face a face entre essas personagens em esta­do de êxtase e aquilo que elas veem sem compreender. É o exato contrário do campo/contracampo clássico americano, em que o olhar se apropria sem cessar da coisa vista, a investe, a domina e a torna sua.

Com Rossellini, sabemos, essa passagem de um mundo familiar, um pouco opaco, refratário a qualquer produção de roteiro de significado, leva à famosa revelação final, no momento decisivo do “milagre”, quando, em uma fração de segundo, tudo aquilo que estava estratificado, sem sentido para além desses encontros opacos, todas essas epifanias desconectadas se descarrega­vam de uma só vez na consciência da personagem em um insight fulgurante. Nada disso se verifica nos filmes de Kiarostami, nos quais a personagem passa frequentemente pela mesma experiência de opacidade de um mundo que se tornou de repente pouco familiar, mas não passa por uma revelação final ful­gurante. Em seu cinema, em que não se filmam senão epifanias delicadas, não há lugar para o arroubo miraculoso. Kiarostami jamais filma aquele momen­to em que alguma coisa da travessia do mundo e suas epifanias misteriosas poderiam se desenrolar em “ponto do real”, em tomada de consciência de si por parte da personagem. É como se ele achasse obsceno exibir esse momento, o da revelação íntima de sua personagem, ao espectador. Não há dúvida de que alguma coisa ocorreu ao final do filme, uma reviravolta da consciência que a personagem tem de si e do mundo, mas o cineasta faz a escolha de man­ter a si mesmo e a nós distantes desse momento, que não diz respeito senão à personagem. Esses são os famosos finais de filmes (E a vida continua, Através das oliveiras) nos quais o cineasta recua abruptamente em relação às perso­nagens, observa-as de longe e do alto, do topo da colina, a uma distância tal que ele já não pode ouvir o que dizem nem ler nos rostos os sinais da provável reviravolta. Ao contrário de Rossellini, que naquele momento nos autorizava, pela primeira vez ao longo do filme, a entrar na consciência revirada de sua criatura, Kiarostami se distancia ou se retira pudicamente (como na noite de Gosto de cereja [1997]) da vivência do instante fatal por parte da personagem. Talvez a única exceção seja a cena da madrugada, ao final de O vento nos leva­rá, quando o herói começa a disparar a câmera fotográfica e a tirar fotos, em rápida sucessão, de mulheres que desfilam pelo caminho para ir à cabeceira da velha senhora que acaba de morrer. Kiarostami permite-se compartilhar conosco, nesse momento, em tomada bastante próxima, a consciência da per­sonagem. O engenheiro se comportara até então como um estrangeiro egoísta e cínico (que desejava, por razões profissionais, a morte daquela centenária), como um cidadão humanamente imperturbado pelas pessoas daquela região distante, à exceção de um garotinho que lhe dá a entender não querer mais sua amizade falsa e interesseira. A tomada de consciência relacionada a esse julgamento da criança e a seu abandono por parte de seus auxiliares (estra­nhamente kafkianos) lhe permitirá, enfim, in extremis, compor imagens jus­tas das mulheres dessas vilas, uma vez que ele acaba de renunciar a seu olhar viciado – olhar de mercenário da imagem – sobre aquela população. O con­tracampo das mulheres que desfilam observando a câmera ressoa fortemente com a última sequência de Viagem à Itália, na qual a tela – após o milagre que acaba de arrebatar as duas personagens e esvaziá-las de seu olhar viciado sobre aquele local estrangeiro – é atravessada pelo povo dos anônimos.

A presença do sagrado no mundo

A “diferença na semelhança” entre os dois cineastas se deve a uma con­cepção diferente da presença do sagrado no mundo. Para Rossellini, à exceção de Francisco, arauto de Deus (Francesco, giullaredi Dio, 1950), o sagrado se manifesta por um surto, uma intrusão que causa um buraco na continuidade do mundo e no conforto da consciência de sua personagem. O milagre é um obstáculo no famoso “vestido sem costuras” da realidade cara a André Bazin. Ele se localiza no centésimo de segundo do “ponto do real” em que a cons­ciência do sujeito abre-se a si mesma, em um estalo desconcertante, graças a um último ponto de encontro, decisivo, em circunstância completamente única, com o real. Rossellini falava de bom grado dessa revelação que opera, em diferentes modalidades, ao final de Roma cidade aberta, Alemanha ano zero, Stromboli, Viagem à Itália e Europa 51 (Europa ‘51, 1952). Kiarostami se furta incessantemente, em nome do respeito à vida privada e às convicções íntimas que não importam senão a si mesmo, toda vez que lhe é colocada a questão da relação de seu cinema com o sagrado. Mesmo sendo difícil negar a presença, em seus filmes, desses momentos epifânicos discretos ou da pre­sença do sagrado insuflado no mundo. Penso naquelas cenas que pontilham sua obra em que sopra um vento imprevisto cuja origem (natural? divina?) é indefinível. Ao final de Onde fica a casa do meu amigo?,no momento em que o velho senhor deixa Ahmad para que enfrente sozinho a última etapa de sua jornada, uma violenta lufada de vento adentra a sequência e agita a árvore solitária do local, fazendo as folhas voarem. Uma manhã, nos alojamentos da filmagem de Através das oliveiras, na cena do eco, um tiro dispara um vento tão imprevisível quanto inexplicável. Essas lufadas de vento não são a única manifestação do sagrado nos filmes de Abbas Kiarostami. Ele compartilha com Rossellini a emoção meio sobrenatural daquilo que surge da noite, do subsolo, do fora de quadro e que vem perturbar a lógica do espaço e do tem­po profanos. Há também essas tempestades que fascinam e esclarecem, em flashes intermitentes, o mundo mergulhado no invisível da noite, como nas últimas sequências de Gosto de cereja, no documentário ABC África (2001) e na última parte de Cinco (2003). Com este último, Kiarostami chegou a filmar epifanias em si, sem personagem, com sua pequena câmera digital, às cegas, aguardando pacientemente essas manifestações de uma presença discreta do sagrado no mundo. Manifestações que, como Rossellini, ele está pronto para suscitar na filmagem ou retrabalhar na montagem e na edição. “O mundo está aí”, ao alcance, mas às vezes precisa ser seriamente recons­truído para tornar-se viável ao cinema.

O sagrado, com Kiarostami, não faz um buraco na continuidade do mun­do nem da consciência da personagem. Essa é provavelmente a maior dife­rença entre seu cinema e o de Rossellini. O sagrado se apresenta com mais frequência como uma epifania discretamente perturbadora por sua imprevi­sibilidade e pela transformação súbita que ela opera na aparência do mundo, mas esse evento que afeta o visível é sempre atribuível a um fenômeno natural, apenas um pouco rápido ou acelerado demais, improvável nas condições de seu surgimento. O sagrado se manifesta nos filmes do cineasta iraniano como um eflúvio que paira sutilmente sobre o universo habitado por suas persona­gens para, de tempos em tempos, soprar em suas asas. Porém, ao contrário de Rossellini, Kiarostami parece se proibir, por delicadeza, de assistir ao momen­to em que essas asas tocam a personagem para causar uma reviravolta íntima que não diz respeito senão a si.

Tradução do francês por Tiago Lima

Notas:
* Publicado originalmente com o título “De l’épiphaniedanslecinéma de Kiarostami et de Rossellini”, CinémAction – Croyances et sacréaucinéma, n. 134, 2010, pp. 196-200.
** Crítico, professor (Université Sorbonne Nouvelle – Paris III e La Fémis), roteirista e cineasta. Foi chefe de redação e diretor de coleção nos CahiersduCinéma. É autor de obras de referência nos estudos do cinema, tais como Abbas Kiarostami(2004), Godard autravail: lesannées60 (2007) e Esthétiquedufilm(com Jacques Aumont e Michel Marie, 2008).
1 Trecho do filme 10 sobre Dez (2003) de Abbas Kiarostami.


Texto extraído do catálogo Um filme, cem histórias: Abbas Kiarostami. Organizado por Fábio Savino e Maria Chiaretti (CCBB, 2016)

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