domingo, 16 de outubro de 2016

Manuel na Ilha das Maravilhas


Manuel na Ilha das Maravilhas (Seriado para a TV em três partes, França, 1985)
por Fergus Daly
Esta série infantil em três partes para a TV Francesa (existem versões alternativas como longa-metragem, Os Destinos de Manuel, e uma série em quatro partes para a TV Portuguesa, Aventura em Madeira) é a favorita para muitos dos devotados a Raúl Ruiz. Isto porque ela reúne o encantamento  e mistério de Lewis Carroll, Carlo Collodi e os irmãos Grimm aos experimentos do cineasta com o expediente narrativo e com o que ele chama de modelo pentalúdico de narração (no qual as personagens são jogadas como dados em combinações e situações governadas pelo jogo do Acaso e do Destino).
Mas este filme infantil está entre seus trabalhos mais complexos, difícil de abarcar em sua totalidade. Ele pode parecer uma coleção arbitrária de livre-associação de palavras e imagens, beirando o nonsense. Mas espectadores atentos terão a forte impressão de que há um método por trás desta semiloucura. De outro modo, ele não produziria as emoções intensas que tão claramente oferece. As obsessões de Ruiz de filme a filme reúnem as partes - e a emoção vem da bifurcação totalmente inesperada dentro do já conhecido território mapeado.
Escrever ou filmar para crianças pode por vezes levar alguém diretamente à fonte de sua arte. Ter que adaptar perceptivelmente o estilo confronta-os com o que deve ser incluído. Manuel nos deixa com o Ruiz essencial, a companhia audiovisual para seu extraordinário livro, Poética do Cinema1. Sua atordoante metodologia narrativa virada-sobre-virada cria uma estrutura temporal labiríntica.
A primeira parte nos apresenta a três mundos possíveis. Em cada um destes mundos, Manuel, aos sete anos, responde diferentemente ao chamado que o mundo lhe faz. Convenientemente, num filme onde nada coincide, as três partes da história não coincidem com a estrutura dos três episódios (a forma-trindade retorna frequentemente em Ruiz). Neste caso, passado, presente e futuro - a trindade laica ou o Tempo en soi - é o verdadeiro protagonista do filme, chamado também de "Há muito tempo" (primeira parte), "Agora", (segunda parte), e "Futuro" (terceira parte). A princípio, isto dá à história uma ordem aparente antes das digressões tomarem conta.
O menino responde ao chamado mas não é capaz de dizer se é um pedido de ajuda, um convite, uma ordem ou um aviso. Ele o é tudo isso? Imediatamente o espectador é empurrado numa posição de ambiguidade máxima, a experiência eludindo o paradigma convencional de conflito e identificação que tipifica o cinema de Hollywood. Ruiz junta forças com uma linha inteiramente alternativa de cinema, de Kenji Mizoguchi (uma antiga inspiração declarada) a Hou Hsiao-Hsien, que oferece personagens inativos, quase sonâmbulos. Tais personagens possuem um dever ou obrigação intrarrelativa para com forças ocultas, vozes carregadas pelo vento - mesmo que tal noção seja logo desmentida pela declaração de Manuel: "Não estou matando aula porque uma voz me chama, mas porque escolhi assim".
Logo ele se encontra face a face com ele mesmo seis anos mais velho. Só histórias poderiam preencher - ou melhor, produzir - o intervalo. Assim como em Samuel Beckett, só as histórias separam um do outro nossos seres dispersos. O efeito da decisão de Manuel - num universo onde apenas os eventos mais distantes afetam um ao outro - é brutal: a morte repentina de sua mãe. Vendo Manuel, as questões dominantes são menos "o que acontecerá a seguir?" ou "sobre o que é isto?" e mais: "de onde vêm estes fragmentos de imagens e relatos? Quais são as regras da gênese deste filme?".
A multiplicação de linhas narrativas prossegue através do filme. Para Ruiz, a questão jamais pode ser a de "apenas" ir para a frente e para trás pela história da vida de Manuel. Em vez disso, ele aplica as técnicas narrativas delineadas em sua Poética do Cinema: as imagens vêm primeiro, a narração vem em seguida. Imagens geram novas imagens, tornando a conexão e a desconexão dos fragmentos-de-história numa "loteria de sincronismos e diacronismos" (p.54). Os princípios organizativos da construção narrativa de Ruiz nada tem a ver com aqueles que governam a realidade. Em Ruiz, as regras generativas envolvem apenas imagens e códigos que escapam ao racionalismo empobrecido do modelo de Hollywood. Seu objetivo é produzir, segundo sua frase après Walter Benjamin, "uma nuvem de poeira de signos sem significado capaz de conspirar contra as convicções visuais" (p.32).
Manuel nº 2 entra em cena e recomeçamos num novo mundo possível. "Dentro de cada série de histórias cada uma é um jogo em si," diz Ruiz (p.85). A questão colocada é a seguinte: o que acontece quando há um novo elemento adicionado no mesmo roteiro de antes, nomeadamente Manuel sendo observado pela mãe (enquanto sai de casa). Neste caso, ele penetrará o jardim proibido, encontrará o pescador, se fará novas perguntas e provocará um novo resultado: a punição e a morte de seu pai.
No terceiro mundo possível, ele escolhe a cautela de modo a salvar ambos os pais, mas, de acordo com a exaustão de possibilidades que tal método Leibniziano demanda, agora é o próprio Manuel quem deve morrer. Hora de recomeçar! O sonho de Ruiz: "um filme feito apenas de pontos de partida" (p.112).
A segunda parte (cuja natureza é a princípio confusa, já que começa imediatamente depois das três mini-narrativas da primeira parte e antes mesmo do final do primeiro episódio) é intitulada de "O Piquenique dos Sonhos". Embora vagamente "se limite à trama", ela se desvia em muitas e diferentes direções, onde o par temático comum/especial substitui o dualismo familiar/desconhecido da primeira parte. (Cada parte é guiada por uma "dominante" temática, um par de noções que tendem a trocar de sentido entre si na medida de seu progresso).
Ruiz inventa séries de mini-narrativas, cenas seriadas, acontecimentos ou vinhetas que se seguem em sequência sobre trilhos paralelos. Seus pontos de encontro ocasionais são mais impressionistas que progressivos. Esta parte envolve muita enumeração e acumulação matemática. Nos deslocamos de uma ocupação com o Tempo, o Destino e a Narração para problemas mais científicos de experimento, aritmética e economia (uma personagem cujo nome é Sr. Dinheiro). Se Ruiz permanece um Surrealista, isto está em sua obsessão por metáforas extraídas da física a respeito de forças eletromagnéticas, ondas de interferência, curtos-circuitos de energia e tênues conexões entre "vasos comunicantes".
Numa excursão escolar para a floresta, numa tentativa de fazer um sonho coletivo se tornar real, O corpo de Manuel é roubado por um lenhador inclinado a se preocupar com o declínio na criatividade "das pessoas". Logo encontramos um bando de fantasma ex-piratas, pretexto para que Ruiz penetre um laboratório sensual de faculdades translocadas no qual lágrimas mudam de gosto e um baralho de cartas é escutado segundo lições sobre a verdade.
A Parte Três (que começa no Episódio Dois), chamada de "A Pequena Campeã de Xadrez", encarrega a narração em voz-off (até agora, desconhecida) ao próprio Manuel. Ele se compromete a contar sua própria história, e acrescenta que é "uma história que inventei em minha infância distante e que acontece no futuro". O tom é menos barroco, mais gótico, na medida em que Ruiz explora "as maravilhas da noite". A obsessão do cineasta nesta sequência concerne a percepção e o deciframento de sinais e códigos secretos. Numa festa infantil que acontece num Museu, questões são colocadas: "De onde vêm essas vozes? Para onde vão as sombras?".
O padrão geral da obra como um todo se torna, assim, clara. Se a Parte Um oferece histórias filosóficas e a Parte Dois explora a ciência (de uma variedade um tanto New Age), então a Parte Três funciona como uma poética audiovisual que delineia uma equação entre o cinema e o mundo de sombras das histórias infantis. É um chamado selvagem: "Meu amigo, a arte chama", diz uma criança antes de iniciar uma canção (em inglês). Nesta Parte muito comovente, Ruiz o cineasta se desembaraça de fato - acompanhado pela música igualmente hipnótica de Jorge Arriagada. Da Ilha do Elefante (uma espécie de cinema dentro de um elefante) chega o Capitão Pombo de Albuquerque. Ele encena um movimento de teatro-de-sombras tão ameaçador, que a impressão é a de que algo além da vida e da morte está em jogo. Como o mítico Barqueiro, o Capitão anuncia: "Atravessar a fronteira é meu negócio. Eu atravesso a gente de um mundo ao outro" - antes de morrer, esfaqueado nas costas por uma das sombras que ele mesmo conjurou. A lição: a arte nasce do mundo obscuro das brincadeiras de criança. Ela é um bombardeio de símbolos "que brotaram do nada" (p.31), que fogem à decifração articulada. Mas, devido a suas origens demoníacas, a arte está fadada a destruir seus praticantes.
A ars combinatoria de Ruiz nunca é arbitrária, e o espectador não deve meramente se satisfazer com o sabor do banquete audiovisual oferecido. É uma questão de decifrar a forma generativa singular de cada obra individual: essas digressões sem-fim que criam uma poética genética única para cada filme. Pois então qual é a blueprint de Manuel na Ilha das Maravilhas? Ele nos leva numa busca através dos mundos, primeiro, o do narrador, tecelão filosófico de palavras e de mundos; segundo, o do laboratório de cálculo e computação da ciência; e, terceiro, o das fontes genéticas da criatividade, da arte e da vida. Uma busca pelo quê? Por aquela imagem (ou, mais precisamente, por seu poder, seu "alcance"), a imagem-Ur a partir da qual a narrativa pode fluir (como em Cidadão Kane): neste caso, a luz amarela na noite da janela da casa dos pais, e a mão do ladrão que agarra o tesouro roubado no jardim defronte a janela.
Em Manuel, mais que em qualquer outro filme, o cinema de Ruiz nos leva a todos os lugares de uma só vez. E, tendo-o feito, nos pergunta, numa final virada irônica: "Você pode mesmo ver? Isto é o que desejava ver?".
1. Raúl Ruiz, Poetics of Cinema (Paris: Éditions Dis Voir,1995).
Original em inglês disponível em: http://rouge.com.au/2/manoel.html
 


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