sábado, 18 de fevereiro de 2017

Excerto de “Vertigo, a teoria artística de Alfred Hitchcock e seus desdobramentos no cinema moderno” (Segunda parte)


Por Luiz Carlos Oliveira Jr.       

5. O orgasmo feminino    


Um aspecto crucial do filme é a maneira como ele transforma o suspense psicológico e de acento metafísico de Hitchcock num thriller composto basicamente de sensações corporais, que solicitam os sentidos de forma mais “primitiva”. Enquanto as perseguições de Scottie a Madeleine criavam uma sideração, uma lenta experiência da duração e do olhar, a cena de perseguição de Instinto selvagem é pura adrenalina: Catherine sai ultrapassando todo mundo em seu veloz carro esporte e Nick tenta manter-se na sua cola, até que, numa das ultrapassagens perigosas, ele quase bate de frente com um caminhão.   

Se, em Vertigo, a conexão entre Scottie e Madeleine se exprimia por uma relação transcendente que evocava o conhecimento platônico da Ideia, em Instinto selvagem, ao contrário, a ligação entre Nick e Catherine se pauta numa relação imediata, num magnetismo de corpos e mentes conectados por ferormônios e forças químicas de atração. Por conseguinte, a identificação do espectador com as personagens não se dá mais por nuanças psicológicas, mas por emoções fortes ligadas à carne e aos sentidos primários, às pulsões de sexo e de violência, aos baixos instintos.
Não por acaso, as cenas de sexo, que inexistiam em Vertigo (pois Hitchcock mantinha nas elipses os momentos em que, como se pode presumir, Scottie e Madeleine fazem sexo), têm uma importância capital em Instinto selvagem (e não me refiro somente à bilheteria alcançada pelo filme). Ao mesmo tempo em que representa o ato sexual em toda sua transpiração e corporeidade, Verhoeven desloca o polo do prazer para o lado feminino, fazendo da representação do orgasmo da mulher o momento culminante e privilegiado das cenas (com exceção da transa afobada de Nick com Beth, em que ele descarrega com brutalidade – beirando o estupro – as tensões libidinais acumuladas ao longo do dia). Embora as cenas de sexo do filme correspondam a uma técnica de prazer essencialmente masculina, seguindo o “modelo hidráulico do orgasmo como tensão crescente que desemboca num alívio explosivo”124, há de se reconhecer que o clímax da grande transa do filme (ou seja, a primeira transa entre Nick e Catherine) é a ação da mulher – posicionada por cima do homem – numa escalada de prazer que termina de forma apoteótica, fazendo jus ao restante da performance espetacular do casal.          

Em seu filme seguinte, Showgirls (1995), a obra-prima mais maldita dos anos 1990 (e talvez o mais belo suicídio artístico da história recente de Hollywood125), Verhoeven filmaria uma outra cena de orgasmo feminino em chave ainda mais hiperbólica. Trata-se da cena em que Nomi (Elizabeth Berkley), que foi para Las Vegas tentar carreira como dançarina, transa com o dono de uma rica casa de shows na piscina da mansão em que ele mora. A piscina é rodeada de palmeiras de néon e possui uma queda d’água artificial: estamos no paraíso do simulacro e da cafonice. Quando Nomi chega ao orgasmo, ela pende o tronco e a cabeça para trás e balança o corpo freneticamente, com a água da cachoeira artificial caindo sobre ela. É um espetáculo no limite do exagero e do atletismo sexual. Já não se trata de sexo, mas de “hipersexo”.126 Nomi repete com o parceiro os mesmos movimentos que já havia executado numa cena anterior, quando fizera uma lap dance para ele. O sexo verdadeiro e o sexo simulado, portanto, se equivalem. Ela fingiu prazer nas duas ocasiões?127 Ou gozou de verdade tanto durante a performance na boate de strip-tease quanto na cena íntima na piscina? Ou não faz sentido diferenciar uma situação da outra, já que, no coração da sociedade do espetáculo, a vida é uma performance permanente e não há fronteira entre o real e sua simulação?        
O fato é que, tanto na cena do orgasmo de Catherine em Instinto selvagem como nesta do orgasmo de Nomi em Showgirls, Verhoeven enfatiza, reforça, sublinha essa cena recalcada pela sociedade patriarcal e, por extensão, pelo cinema hollywoodiano clássico: o gozo feminino, o grande outro de um modelo sexual androcêntrico. O diretor conscientemente promove uma perda da aura, uma quebra do encanto da antiga star feminina, para que possa emergir toda uma potência corporal que, anestesiada pelo código performativo da Hollywood clássica, retorna agora nas explosões somáticas de Catherine e, principalmente, de Nomi. Não que as mulheres da Antiga Hollywood estivessem desprovidas de erotismo, muito pelo contrário: isso era uma das exigências do espetáculo, e foram muitas as estrelas que – não raro contrastando com outra atriz que representasse a imagem da mulher comportada, sem sal ou até mesmo frígida – praticamente impuseram aos filmes uma carga erótica inescapável, como foi o caso de Marlene Dietrich, Rita Hayworth, Cyd Charisse, Kim Novak, Gloria Grahame e, naturalmente, Marylin Monroe. Além disso, não podemos negligenciar que a era clássica já continha também uma crítica interna do patriarcalismo puritano que ditava suas normas. Os melodramas de Douglas Sirk, alguns filmes de Fritz Lang (Os corruptos [The Big Heat, 1953], Só a mulher peca [Clash by Night, 1952]) e de Vincente Minnelli (Paixões sem freios [The Cobweb, 1955], Deus sabe quanto amei [Some came running, 1958]), para não falar dos próprios filmes de Hitchcock, são só alguns dos exemplos de obras que exprimiam uma clara consciência crítica a respeito da submissão da mulher, no modelo patriarcal, a uma idealização, a uma imagem preconcebida pelo homem, e que a sufocava.           
Mas, no fim das contas, essa imagem sobrevivia aos filmes, e a estrela feminina permanecia envolta numa redoma de cristal. A diferença, em Verhoeven, está justamente aí: suas heroínas destroem os moldes de maneira irreversível. Elas impõem no centro da imagem não apenas seus magníficos corpos, mas, sobretudo, os fluidos e desejos carnais que eles implicam, e que não podem ser sublimados numa relação amorosa idealizada. É sexo o que elas querem, e não o ideal romântico nutrido pelo passado de Hollywood, aquele ideal que enterrava o prazer sexual feminino sob a imagem de uma vida matrimonial tão honrada quanto insossa.     

123 Ibid.
124 L. Williams, Screening Sex: Une histoire de la sexualité sur les écrans américains, Paris: Capricci, 2014, p.
119.
125 Depois do extraordinário sucesso de Instinto selvagem, Verhoeven tinha carta branca de todos os estúdios
para fazer o que quisesse. Optou por fazer um virulento retrato da América contemporânea e uma demolição
impiedosa dos mitos que o cinema hollywoodiano ajudara a construir. O resultado, em termos de bilheteria e de
repercussão na imprensa especializada, foi um fracasso retumbante.
126 J.-F. Rauger, “La mise en scène de l’acte sexuel: focalisation/fuckalization”, art. cit., p. 277.
127 Afinal, como Meg Ryan demonstrou muito bem numa cena clássica de Harry & Sally – Feitos um para o
outro (When Harry met Sally, Rob Reiner, 1989), “as mulheres podem simular os orgasmos mais espetaculares”
sem que os homens percebam que se trata de fingimento (cf. L. Williams, Screening Sexop. cit., p. 91).      

Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27161/tde-29062015-123125/pt-br.php  

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