sábado, 22 de julho de 2017

DEIXAI TODA ESPERANÇA, Ó VÓS QUE ENTRAIS:

A poética do cinema de horror italiano

Miguel Haoni

Introdução: O cinema de Dante Alighieri[1]

O presente artigo pretende, através de um recorte bem específico de três filmes, traçar um comentário sobre o universo estético do cinema de horror fantástico concebido na Itália como uma das culminâncias da tradição milenar do grotesco na arte.
Desde a antiguidade romana, através da poesia de Petrônio e seu Satíricon, passando pela Commedia dell’arte e seu jogo de inversão de valores, esta tradição chegou ao seu momento de maior maturidade com a confecção da Comédia de Dante Alighieri[2], ainda na Idade Média.
Comédia – posteriormente adjetivada como ‘Divina’ por Giovanni Boccaccio – é um capítulo central na cultura visual, principalmente no que tange à representação do Mal. Diversos artistas do mundo inteiro e em diversos momentos da História, ao pretenderem representar as encarnações do Mal e seu horror, recorriam às imagens da cântica do Inferno[3], direta[4] ou indiretamente. Incluída aqui está a geração de cineastas italianos que a partir dos anos 60 do século XX recorrerão a esta tradição para conceber suas imagens.
A autoridade intelectual, política e artística de Dante relacionou-se sobremaneira ao seu contexto. Dante era um homem medieval, e sua Comédia resultou das mudanças nos paradigmas culturais, políticos e religiosos advindos da primeira onda de histeria coletiva em torno do fim do mundo, na virada para o ano Mil. A mudança de milênio e a expectativa do Apocalipse acarretou implicações catastróficas para o imaginário cristão europeu. A cultura do medo, base para a produção artística e ideológica do período, atinge seu paroxismo neste ponto de grande crise.
Soma-se a isso o fato de o poeta, em seu ímpeto pedagógico, ter ousado compor em língua vulgar num contexto em que a escrita só era concebida em Latim. Ao optar pelo estrato menor na hierarquia cultural, Dante se alçou à posição de pai da literatura italiana.
O berço de Dante, Florença – pela qual nutria sentimentos de amor e ódio – era uma das maiores e mais economicamente desenvolvidas cidades européias. Testemunha da falência do modelo aristocrático e da ascensão prematura dos valores burgueses, a cidade com a qual Dante inicia seu turbulento diálogo era moderna antes da letra.
Isso tudo condicionou Dante a escrever sob uma visão escatológica da humanidade, num contexto de degenerescência e decadentismo. É o momento que lhe municia a conceber as imagens de um trajeto em direção às trevas.
Tais dados nos permitiriam criar paralelos com o ambiente da produção cinematográfica italiana a partir dos anos 60: com a crise histérica do “fim do cinema” no contexto da decadência do modelo hollywoodiano e da ascensão da televisão; com a escolha empreendida por determinados artistas que queriam se “fazer ouvir” pela “língua vulgar” dos filmes de horror, faroestes e pepla[5]; e no espaço muito pouco espiritual do studio system italiano.
 Voltemos ao contexto de Dante. Retroativamente a Idade Média foi concebida pelos Iluministas sob o epíteto de “idade das trevas”, mas para o poeta e muitos de seus contemporâneos aquele era um momento de verdadeira iluminação espiritual, ameaçado por um iminente mundanismo destruidor. Até meados do século XIV, Deus era a verdade universal, a medida última do movimento dos homens e da natureza. Em determinado momento se opera uma transição e os pensadores se reapropriam da Razão, impondo o Homem como centro do universo. É em resposta a este contexto que Dante elabora a sua teopoética.
Sua maior contribuição para a cultura imagética foi, entretanto, oferecer uma forma plena ao inferno, algo que até então era uma agremiação de conceitos abstratos e tentativas de caracterização, na instauração daquilo que podemos chamar de fenomenologia do Mal. O começo do poema insere o personagem Dante[6] numa selva escura que já carrega todos os traços daquilo que ele vai abordar na materialização deste Mal. Este é um espaço vegetal, animal e, sobretudo irracional – traço elementar para a criação poética nos filmes abordados mais adiante.
O passeio, guiado pelo poeta Virgílio, através dos círculos infernais tem por motivos motores a aprendizagem intelectual e o aperfeiçoamento espiritual, e exigem de Dante aquilo que os diretores de filmes de horror exigirão de suas plateias: a fé. Sem ela não existe possibilidade de imersão nos universos propostos. Estes artistas parecem pedir um alto nível de integração à substância ficcional ou a audácia da adesão às incoerências da sua criação.
Impossível não recorrer aqui ao início da aventura de Dante quando Virgílio lhe interpela:

Portanto pra teu bem, penso e externo
que tu me sigas, e eu irei te guiando.
Levar-te-ei para lugar eterno
de condenados que ouvirás bradando,
de antigas almas que verás, dolentes,
uma segunda morte em vão rogando;
[7]

E mais à frente, ao perceber a hesitação de Dante em iniciar a viagem:

é tibieza o que faz o teu tolhimento;

essa é o que o homem muita vez ensombra
e de uma honrosa empresa até o reverte,
como o animal que uma visão assombra.
[8]

Para entrarmos na aventura destas obras é preciso que nos permitamos ser conduzidos ao reino movediço da criação cinematográfica. É preciso o desprendimento, a fé e a coragem que Virgílio insuflou em Dante para viajarmos por este Inferno audiovisual.
Na entrada do Inferno os poetas leem inscrições que dizem:

VAI-SE POR MIM À CIDADE DOLENTE,
VAI-SE POR MIM À SEMPITERNA DOR,
VAI-SE POR MIM ENTRE A PERDIDA GENTE.

MOVEU JUSTIÇA O MEU ALTO FEITOR,
FEZ-ME A DIVINA POTESTADE, MAIS
O SUPREMO SABER E O PRIMO AMOR.

ANTES DE MIM NÃO FOI CRIADO MAIS
NADA SENÃO ETERNO, E ETERNA EU DURO.
DEIXAI TODA ESPERANÇA, Ó VÓS QUE ENTRAIS.
[9]

Tal advertência está intimamente ligada às proposições dos cineastas aqui abordados. Seus filmes desenham um movimento em direção ao pesadelo, ao enlouquecimento e para sorvê-los na sua plenitude precisamos não apenas abandonar a esperança, mas nossas regras e padrões racionalizadores, que na estrutura das narrativas serão por vezes, destruídos ou ridicularizados.
Finalmente, podemos concluir, nesta leitura, que Dante já antecipa uma concepção cinematográfica. O Inferno se cria, na forma como o poeta lhe atribuiu, a partir da queda de Lúcifer do céu em direção ao centro da terra. O movimento descendente do Anjo Decaído cava um cone no qual se inscrevem os nove círculos infernais. O Inferno seria, portanto, a materialização, o registro de um movimento – definição esta que muitos teóricos atribuíram ao cinema.

(Fragmento do texto “Deixai toda a esperança, ó vós que entrais: a poética do cinema de horror italiano”, originalmente publicado no livro Cinemas de Horror.)


[1] Muito das ideias aqui apresentadas é produto da palestra do Professor Ernani Fritoli sobre A Divina Comédia na Universidade Federal do Paraná, dia 28 de setembro de 2013.
[2] Aqui utilizamos a edição de A Divina Comédia – Inferno/Dante Alighieri – Trad. Italo Eugenio Mauro. São Paulo: Ed. 34, 1998.
[3] A Comédia é dividida em três cânticas (InfernoPurgatório e Paraíso) com 33 cantos cada. Soma-se a esta estrutura triádica o primeiro canto do Inferno (que funciona como prólogo), num total de 100 cantos.
[4] Daqueles que ilustraram a Comédia destacam-se o florentino Sandro Botticelli (1445-1510), o inglês William Blake (1757-1827), o francês Gustave Doré (1832-1883) e o espanhol Salvador Dalí (1904-1989)
[5] Filmes de sandália e espada, protagonizados por heróis como Hércules e Maciste, numa mítica Antiguidade greco-romana, os pepla fixaram-se na história do cinema comercial a partir da crise da indústria hollywoodiana dos anos 50 e respondiam ao domínio da televisão oferecendo aventuras espetaculares em grandes produções (numa espécie de pré-blockbuster) como Ben-Hur (William Wyler, 1959), Quo Vadis (Mervyn Le Roy, 1951), Spartacus (Stanley Kubrick, 1960) entre outros, que transformavam passagens bíblicas em filmes de ação.
[6] Dante Alighieri foi talvez o primeiro literato a se inserir como personagem numa obra de ficção
[7] Canto I, versos 112-117 (p. 29).
[8] Canto II, versos 45-48 (p. 32).
[9] Canto III, versos 1-9 (p. 37).

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