sábado, 30 de setembro de 2017

Jerry Lewis e a comédia moderna





















Luiz Carlos Oliveira Jr.

No começo de O Mensageiro Trapalhão (The Bellboy, 1960), primeiro filme dirigido por Jerry Lewis, um homem se apresenta como produtor executivo da Paramount e avisa ao espectador que este filme não é como a maioria. Aqui, não há trama nem enredo, mas apenas “uma série de sequências idiotas”, uma sucessão de situações cômicas provocadas por um funcionário de um hotel.

Duas características recorrentes do cinema de Lewis já se colocam aí. Em primeiro lugar, a desestruturação do enredo. Embora os dois filmes consensualmente (mas não indiscutivelmente) apontados como os seus melhores – a saber, O Professor Aloprado (The Nutty Professor, 1963) e O Otário (The Patsy, 1964) – sejam justamente os mais bem estruturados em termos narrativos e dramatúrgicos, há de se notar que o formato episódico, mais solto e desorganizado, rendeu-lhe momentos inesquecíveis como comediante. Em filmes como O Terror das Mulheres (The Ladies Man, 1961), A Família Fuleira (The Family Jewels, 1965) e As Loucuras de Jerry Lewis (Cracking Up/Smorgasbord, 1983), além do próprio O Mensageiro Trapalhão, a falta de uma intriga romântica ou de uma carga sentimental relevante, assim como a proposital fragilidade do fio narrativo condutor, permite a Lewis concentrar seus esforços criativos na elaboração das gags. Conta-se que o roteiro de O Mensageiro Trapalhão foi escrito em oito dias; a descrição do enredo é mínima, mas o detalhamento dos aspectos visuais e sonoros das gags é tão minucioso que perfaz um roteiro de 170 páginas para apenas 70 minutos de filme. Construindo O Mensageiro Trapalhão O Terror das Mulheres quase como uma mera sucessão de gags, Lewis recupera algo das primeiras comédias burlescas, em que a narrativa decorria muito mais da exploração sistemática das possibilidades cômicas de um espaço do que de uma estrutura dramática preconcebida. Esse cinema de colagem anárquica de ideias cômicas era um atentado involuntário à tradição clássica da obra de arte harmoniosa e coesa com partes organicamente articuladas num todo. Não por acaso, conquistou a admiração de muitos artistas e intelectuais de vanguarda (André Breton, Antonin Artaud, Bertolt Brecht). Também não por acaso, o sucessor tardio desse cinema, Jerry Lewis, seria uma grande fonte de inspiração para Jean-Luc Godard.

No cinema, quem nasceu primeiro foi a gag, e não as técnicas de narração: “Ainda antes de o cinema pensar em contar histórias, já reconhecia a sua capacidade de registrar efeitos visuais cômicos, quase sempre nascidos de uma relação problemática entre o ator e os objetos que o rodeiam”. A gag não precisa trabalhar no contexto de um argumento preciso; ela não se submete à ordenação conjunta de uma narrativa senão para desestabilizá-la e destruí-la – ela “é uma perturbação do discurso ‘normal’, da lógica implícita do filme”. Em linhas gerais, pode-se defini-la como a descrição das relações desastrosas entre um corpo, um espaço e os objetos aí presentes. O plano geral, essencial no cinema burlesco, sublinha a relação do herói cômico com um contexto espacial que pode ser favorável ou – na maioria dos casos – desfavorável a ele. O corpo burlesco é uma insurgência contra o regime de vida mecanizado e repetitivo das sociedades modernas. Sempre que adentra algum lugar, sua missão é uma só: aumentar o grau de entropia. O limite da fórmula, evidentemente, é a destruição total, como se vê com frequência nos filmes com Jerry Lewis: por uma série de acidentes em cascata, ele provoca um verdadeiro abalo sísmico. Basta ver o desfecho da antológica cena com o professor de canto em O Otário ou o caos promovido em todas as sequências na loja de departamento de Errado pra Cachorro (Who’s Minding the Store?, Frank Tashlin, 1963).

A outra premissa que Lewis assume lá no prólogo de O Mensageiro Trapalhão é o distanciamento. Trata-se de afirmar e deixar claro que “isto é um filme”. A comicidade de Lewis funciona fora do processo tradicional de envolvimento do espectador. Eis um dos traços da sua modernidade: questionar e deslocar, como o cinema moderno faria ao longo dos anos 1960, a relação convencionada entre plateia e filme. Isso o levará – sem que seja preciso abrir mão da comédia física em seu funcionamento mais básico e elementar – à adoção de formas cômicas sofisticadas, balizadas não somente pela performance burlesca, mas também pela excelência técnica e estilística, o que resulta numa grande recorrência da gag metacinematográfica na obra de Lewis. Piadas que colocam em jogo os segredos de fabricação dos filmes ou seus componentes materiais e estruturais, que já existiam desde Chaplin (e mesmo antes), seriam uma das suas diversões prediletas. Difícil fugir do exemplo mais óbvio: a cena de apresentação de Buddy Love em O Professor Aloprado, que começa com um plano-sequência inteiramente filmado com câmera subjetiva: o espectador vê tudo pelos olhos da personagem, que anda pela rua provocando olhares admirados nos lugares por onde passa. Na sequência anterior havíamos visto Lewis se transformar num monstro, mas a reação das pessoas agora é ambígua, podendo ou não ser de espanto com algo horripilante. Um suspense se cria, dilatado pela longa duração do plano. Somente depois que ele entra numa boate e desperta novos olhares surpresos ocorre o contraplano que nos mostra que o tímido e desastrado Julius Kelp se metamorfoseou não exatamente num monstro, mas num galã narcisista, arrogante e excêntrico (o Mr. Hyde desta adaptação enviesada de O Médico e o Monstro). A eficácia da cena está totalmente vinculada à inventividade formal do ator-diretor.

O Professor Aloprado é o primeiro filme em que Lewis investe mais detidamente no que se afirmaria como sua grande obsessão temática: a divisão da personalidade. A partir daí, uma constante multiplicação de personae cômicas terá lugar em sua obra. Em A Família Fuleira, ele interpreta sete figuras diferentes, numa narrativa mais próxima do formato livre de O Mensageiro Trapalhão do que da construção linear de O Professor Aloprado e O Otário. No filme seguinte, Três em um Sofá (Three on a Couch, 1966), Lewis faz um artista plástico que tem de se desdobrar em outras três personagens. O protagonista é apenas um homem comum, até mesmo banal (é talvez a primeira vez que Lewis aparece na tela “de cara limpa”, sem o filtro do clown); sua função no filme é estabelecer um contraponto para as figuras cômicas, impondo ao espectador um maior grau de distanciamento, pois fica evidente no jogo de disfarce o fato de Lewis realizar esse filme para refletir sobre seu próprio trabalho de comediante. Filme de transição (de crise?), Três em um Sofá questiona o sentido ontológico da representação cômica. Lewis indaga a si mesmo (e a nós) sobre o que significa, afinal, ser engraçado – reflexão central da comédia moderna, como já demonstrara a obra-prima O Otário.

O troca-troca de fantasias se repetirá em O Fofoqueiro (The Big Mouth, 1967) e nos filmes posteriores do comediante, atingindo um ponto de ebulição no extraordinário As Loucuras de Jerry Lewis. Para além de um desejo manifesto de constante autoanálise, essa fragmentação personalística demonstra uma inesgotável pulsão inventiva: trata-se de sempre abrir um novo campo de variedade dentro do repertório de expressões corporais e faciais já disponíveis. Lewis poderia ter passado a carreira inteira fazendo um único papel (digamos, o eterno pateta desastrado, ingênuo e bem intencionado da época da parceria com Dean Martin), e ainda assim o adoraríamos. Mas ele decidiu fazer mais, muito mais, e por isso o consideramos o grande gênio da comédia a ter surgido depois da era Chaplin/Keaton.

Texto originalmente publicado na revista Jerry Lewis – O rei da comédia, catálogo da Mostra do CCBB.

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